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Nº 1620 - Ano 34
07.08.2008

opiniao

Justiça sem reservas

Lúcio Vaz*

Duas reivindicações das ações afirmativas têm ganhado atenção no Brasil e um significativo respaldo institucional. Ambas consistem em tentativas de abolir ou minimizar o racismo contra os negros em nosso país: a primeira é a proposta de proibição de expressões que fazem referência pejorativa à raça negra e a segunda, a instituição de reserva de vagas para negros nas universidades públicas. O sofrimento histórico impetrado aos afro-descendentes no Brasil é, sem dúvida, lastimável, sendo dispensável reconhecer as boas intenções dos proponentes de tais medidas. Entretanto, devemos nos perguntar se elas seriam, de fato, o melhor meio de alcançar o objetivo visado, e se seriam, até mesmo, suficientes para alcançá-lo.

Quanto à primeira das propostas referidas, imagine um cidadão qualquer. Considere todas as suas atividades e características, logo em seguida os xingamentos correspondentes a que ele está sujeito. Por que nós – e não o próprio indivíduo – deveríamos eleger como xingamentos mais insuportáveis aqueles relativos à cor da pele? Ora, pode ser que uma pessoa tenha mais orgulho da honra de sua mãe do que de sua etnia. O que a lei de restrição às manifestações verbais racistas impõe é que qualquer cidadão deve julgar o impropério racial como o mais repugnante, e sua etnia, como uma essência. Parte-se, com isso, do preconceito de que a raça (seja lá o que isso signifique) é o que há de mais essencial em um indivíduo.

A filosofia contemporânea nos ensina a levantar dúvidas sobre a pretensão de encontrar essências no que diz respeito aos seres humanos. Ademais, a biologia critica a aplicabilidade do conceito de "raça" a seres humanos. Não haveria fundamento genético ou filosófico para a preferência dessa característica em detrimento das outras para que uma pessoa seja o que ela é.

Parece-me que a segunda lei – reserva de vagas – tem sido defendida a partir de dois argumentos: a utilidade social e a justiça. O primeiro consiste em dizer que, ao promover a ascensão social de alguns negros por meio do ensino superior, o preconceito seria eliminado ou bastante reduzido. Ora, é um fundamento das avaliações éticas, políticas e jurídicas das sociedades modernas e democráticas atribuir benefícios e punições segundo responsabilidades. Ninguém merece um prêmio por ter sofrido uma injustiça. É especificamente aquele que a praticou que deve ser punido. Os propositores das reservas de cotas transferem o foco de incidência da atribuição de responsabilidade do indivíduo para a raça.

Supõem-se negros e não-negros como blocos monolíticos ou suficientemente homogêneos que permitiriam a atribuição de benefícios e punições a qualquer indivíduo pertencente a eles. Ou seja, beneficiam-se e punem-se uns pelo que se acredita ser racismo de outros

O resultado é uma distorção que tende a punir não-negros, mesmo que nunca tenham discriminado ninguém, e beneficiar negros, mesmo que nunca tenham sido discriminados. Com isso, supõem-se negros e não-negros como blocos monolíticos ou suficientemente homogêneos que permitiriam a atribuição de benefícios e punições a qualquer indivíduo pertencente a eles. Ou seja, beneficiam-se e punem-se uns pelo que se acredita ser racismo de outros.

Partilhando de princípio semelhante à idéia de “consciência de classe”, a “consciência negra” acredita que o conjunto dos afro-descendentes não apenas forma um grupo coeso e unido como constitui uma identidade com funções políticas privilegiadas em relação aos outros grupos a que essas mesmas pessoas pertencem ou que pretendem formar. A suspeita que podemos levantar contra tal presunção de privilégios não se deve apenas ao respeito pelos indivíduos não-negros do presente que seriam injustiçados em razão das ações de outros não-negros, mas também pelos negros, que deveriam estar livres para escolher com que causa, ideologia e ideal de vida queiram se associar e qual característica pessoal ou coletiva desejam privilegiar.

Uma vez questionada a justiça dos meios propostos por alguns dos membros das ações afirmativas para alcançar a plena igualdade racial, resta ainda perguntar se eles nos conduziriam com segurança ao pretendido fim. É fato que, infelizmente, a instituição das cotas raciais gerou em alguns setores da sociedade um compreensível, ainda que injustificável, recrudescimento do preconceito racial. Fato observado em Brasília, onde a medida adotada pela UnB acarretou, há meses, reação de alguns vestibulandos e universitários no Orkut. Esses estudantes, revoltados, procuraram, assim, revidar uma injustiça que, por sua vez, procurava revidar a injustiça contra os negros.

Isso mostra que o que está por trás das boas intenções das intervenções políticas, administrativas e jurídicas aqui debatidas não é um suposto afro-nazismo, que exaltaria a superioridade da etnia provinda dos escravos, mas tão-somente uma concepção errônea sobre a justiça, entendendo-a como uma compensação de forças e ofensas.

Para extirpar a intolerância, a discriminação e os preconceitos raciais, não devemos praticar a institucionalização da vingança, mas promover uma justiça que esteja acima dos particularismos, dos interesses pessoais ou de grupos sociais determinados. Enfim, uma justiça sem reservas.

*Mestre em Filosofia pela UFMG.
Professor da Faculdade Arquidiocesana de Mariana e do Cefet-MG

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