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Nº 1623 - Ano 34
29.08.2008

O dilema de Bernard

Inaugurado há mais de um século, debate sobre o uso de animais na experimentação científica continua intenso; pesquisadores brasileiros aguardam aprovação de lei que regulamenta estudos

Glauciene Lara

No século 19, Claude Bernard, o pai da Fisiologia, provocou uma cisão familiar ao usar animais em experimentos científicos. Ele realizava procedimentos de vivissecção em casa, o que levou sua mulher, Marie Françoise Martin, a fundar a Sociedade Francesa Anti-Vivissecção, arrastando com ela as filhas do casal. Mais de um século depois, o embate doméstico protagonizado por Bernard ganha contornos bem mais complexos, envolvendo pesquisadores, estudantes e grupos de proteção aos animais.

Vivissecção, ou vivisseção, vem do latim e significa operação em animais vivos para observar a forma e o funcionamento de estruturas – estudos anatômicos e fisiológicos. Os primórdios da vivissecção estão entre 500 a.C. e 240 a.C., nos experimentos dos gregos Alcmaeon, Herophilus e Erasistratus. Após as vivissecções feitas na Roma Antiga, com destaque para as pesquisas de Galeno (129 – 210 d.C.), o procedimento foi proibido no Ocidente durante 1.200 anos, tendo sido retomado no Renascimento (século 15).

No Brasil, a comunidade científica aguarda a aprovação de legislação para regulamentar o uso de cobaias na experimentação. Trata-se do Projeto de Lei 1.153/95, conhecido como Lei Arouca, em tramitação há 13 anos no Congresso. De autoria do ex-deputado Sérgio Arouca, falecido em 2003, o projeto que regulamenta o uso científico de animais vertebrados foi aprovado em maio na Câmara dos Deputados. No Senado, a proposta já passou pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), foi aprovada pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte e segue agora para a de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática, antes de ir a plenário.

Enquanto isso, pesquisadores antecipam formas de regulamentar a experimentação animal previstas na Lei Arouca, como a criação de comitês de ética nas instituições de ensino e pesquisa.

Tramitação ética

Desde 2000, a UFMG mantém o Comitê de Ética para Experimentação Animal (Cetea), que teve seu regimento aprovado no ano passado. As normas são baseadas nos princípios do Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (Cobea), considerado referência nos procedimentos de uso de animais na pesquisa e no ensino.

Para que sejam reconhecidas pela Universidade, pesquisas envolvendo animais precisam obter certificado do Cetea, solicitado por formulário disponível no site do Comitê. Os pesquisadores devem informar espécie, quantidade e condições de tratamento e manutenção do animal durante o experimento. “Em uma cirurgia, existe um tipo de anestésico e a quantidade ideal para cada espécie”, exemplifica o professor da Escola de Veterinária e presidente do Cetea, Humberto Oliveira. Paralisantes musculares são proibidos porque não tiram a dor, apenas impedem a reação do animal.

Caso seja necessária a eutanásia – o meio científico prefere esta palavra ao termo sacrifício –, os pesquisadores precisam informar o método a ser utilizado. Os procedimentos devem causar o mínimo de sofrimento físico ou mental à cobaia. As técnicas mais recomendadas são injeção letal e câmara de CO².

Após obter a certificação do Cetea, válida por cinco anos, o pesquisador adquire os animais no biotério de produção da UFMG (CBio), que atende à demanda de espécies de pequeno porte da Universidade. Ana Lúcia Godard, professora de Genética do ICB, membro do Cetea e vice-diretora do biotério, estima que 80% da pesquisa no ICB vale-se de ratos e camundongos. No biotério são criados, por ano, cerca de cinco mil exemplares de cada espécie. A venda dos animais aos projetos de pesquisa ajuda a manter o CBio.

Godard conta que, apesar da diminuição de animais em cada projeto, houve aumento do número de pesquisas. Dessa forma, a demanda por cobaias também cresceu e a UFMG teve que construir novo prédio para conseguir atendê-la. O novo biotério, que deverá ser ativado ainda este ano, está localizado atrás do ICB. Terá capacidade para produzir 200 mil camundongos e 150 mil ratos.

Treinamento

O professor Paulo Sérgio Beirão, do Departamento de Bioquímica do ICB, é favorável às práticas com animais desde que em número reduzido. Graduado em Medicina, o professor aponta a necessidade do treinamento cirúrgico em animais. “O cirurgião treina no cadáver, mas como ele não sangra, pratica em animais antes de operar humanos”, explica.

De acordo com o professor Ernest Lentz, do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina, o treinamento cirúrgico na Unidade começa em porcos abatidos, doados por matadouro conveniado. “O suíno tem dimensões semelhantes às humanas, mas a prática em tecidos vivos confere realidade ao ato cirúrgico”, explica Lentz, ao defender o uso de animais vivos. Por isso, acrescenta o professor, oito coelhos são operados e sacrificados por semestre, média baixa em relação aos números de pesquisas que envolvem ratos e camundongos.

Apesar de achar a prática interessante, Lentz acredita que, se houvesse acesso facilitado, a precisão cirúrgica também poderia ser adquirida em tecidos vivos. “Poderíamos nos valer, por exemplo do coração de um animal que teve morte cerebral”, diz o professor, que admite sentir certo desconforto nas experimentações com animais, apesar de seus 48 anos de ensino.

Já na Escola de Veterinária, diz o presidente do Cetea, Humberto Oliveira, a técnica cirúrgica é treinada com foco na saúde do animal doméstico. Segundo ele, o Comitê defende a máxima redução do uso de animais e a substituição por outros métodos, quando possível.

Cobaias virtuais

A tecnologia pode ajudar a diminuir o uso de animais em atividades acadêmicas da área de biologia. Um recurso viável, na opinião de pesquisadores, são os softwares. “Um programa de computador pode não ser fiel para a pesquisa de um novo tratamento, caso em que o animal é necessário. Mas, nas aulas, o professor já sabe o que vai acontecer, e os alunos, também”, defende a aluna de mestrado do ICB, Isabela Drummond.

A professora Ana Lúcia Godard sugere a troca dos bichos por computadores, modelos matemáticos e vídeos nas aulas do ciclo básico do ICB. Já o professor de fisiologia Miguel José Lopes, também do ICB, adverte que não é possível efetuar essa substituição em todos os procedimentos. “A fisiologia lida com órgãos e sistemas, por isso há questões que não podem ser respondidas com cultura celular ou com programa de computador”, argumenta.

 

Interferência de Rita da Glória em foto de Felipe Zig
rats

 

Estudante gaúcho "acolheu" ratos em casa

Os animais vertebrados – categoria que inclui homens e ratos – são sensíveis à dor, ao estresse e às mudanças do ambiente. Por isso, o fim dos experimentos com cobaias atrai a simpatia de vários setores da sociedade, incluindo a comunidade universitária. Há dois anos, o estudante de biologia Róber Bachinski levou para casa 14 ratos de laboratório da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que seriam sacrificados. Recentemente, Bachinski alcançou uma vitória judicial: obteve junto ao Ministério Público parecer que o dispensa de assistir a aulas na universidade gaúcha, sob o argumento de que é inconstitucional a participação em atividades que contrariem seus princípios éticos.

No Rio de Janeiro, o ator e vereador Cláudio Cavalcanti chegou a apresentar projeto de lei que proibia a experimentação animal na cidade. A proposta foi aprovada na Câmara Municipal e vetada pelo prefeito César Maia. Em Florianópolis, iniciativa semelhante foi promulgada pela Câmara dos Vereadores, após expirar o prazo de apreciação do prefeito. As proposições foram repudiadas pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Na UFMG, os pesquisadores das áreas biológicas são favoráveis à experimentação animal, desde que obedecidos princípios baseados na Declaração Universal dos Direitos dos Animais. A professora Ana Lúcia Godard lembra que, por determinação de norma internacional, experimentos de toxicidade devem ser feitos primeiramente com animais para depois serem testados em humanos. O professor Beirão é taxativo: “Se a experimentação animal for proibida, haverá dois efeitos imediatos: não haverá novos medicamentos, nem vacinas”.

A Lei

A Lei Arouca prevê a criação do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), a ser presidido pelo ministro da Ciência e Tecnologia, e composto por representantes de mais quatro ministérios, de instituições de pesquisa, da indústria farmacêutica e das sociedades protetoras dos animais legalmente estabelecidas no país.
O Projeto também estabelece o registro de biotérios e a criação de Comissão de Ética no Uso de Animais (Ceua) em instituições de ensino e pesquisa. Estão previstas penalidades administrativas para pesquisadores e instituições que descumprirem as normas. A Lei Arouca revoga a Lei 6.683, de 1979, sobre vivissecção de animais, cujo texto é considerado desatualizado pela comunidade científica.

Para Ana Lúcia Godard, as práticas e normas da UFMG já estão bastante avançadas. Além de manter o Cetea, a Universidade participa da Rede Mineira de Bioterismo, composta pelo Instituto René Rachou, pela Fundação Ezequiel Dias (Funed) e por cinco universidades federais. “Minas é o único estado que tem uma rede formalmente instituída. Queremos garantir que os animais produzidos nas instituições da Rede tenham as mesmas qualidades genéticas e sanitárias”, explica.