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Nº 1635 - Ano 35
24.11.2008

opiniao

Complexo de Cidadão Kane

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Por trás de toda crise financeira, há uma “crise de humanidade”. Ainda estamos presos ao velho paradigma segundo o qual a educação financeira consiste apenas em conselhos dados por economistas no intuito de orientar a população quanto ao bom uso de suas economias. Porém, na fala dos especialistas do mercado financeiro, sinto a falta da discussão a respeito do “analfabetismo emocional” decorrente do endeusamento do capital, defendido filosoficamente pelo utilitarismo. Este resgata modelos anteriores de ética que se fundamentam na busca do prazer, tendo como ideólogos Jeremy Bentham e Stuart Mill, que viveram no século 18. O utilitarismo considera o bem a partir de sua finalidade e eficácia evidenciadas pela experiência.

O objetivo seria maximizar o prazer e minimizar a dor como um fim a ser conquistado, e a utilidade é a regra para estabelecer os valores relativos a uma ação. O projeto ético com esta abordagem, que emergiu simultaneamente com o surgimento da sociedade capitalista, enxergou na posse de bens e na obtenção das riquezas sua grande possibilidade de efetivação. A crise financeira que atualmente nos assola é a prova concreta de que o utilitarismo demonstrou-se insuficiente para proporcionar bem-estar coletivo, haja vista sua natureza megalomaníaca que restringe a noção de felicidade aos princípios de eficácia e eficiência, voltados para o desenvolvimento do hábito acumulativo de bens e da postura competitiva em busca de vantagens matemáticas cada vez mais sólidas.

Acontece que, nesse caso, “tudo que é sólido se desmancha no ar”, visto que, na base de uma vida lucrativa, pode-se encontrar uma morte existencial avassaladora. Eis a crise de humanidade deflagrada neste regime de fundamentalismo econômico que marca a atualidade. Por trás deste abalo mercadológico, encontra-se o que eu chamaria de “Complexo de Cidadão Kane”.

Cidadão Kane é um filme de 1941, dirigido por Orson Welles. Kane é um multimilionário que, com poucos escrúpulos, reuniu em seu palácio de Xanadu uma enorme coleção de todas as coisas bonitas e caras do mundo. Ele tem de tudo e usa todas as pessoas que o cercam como simples instrumentos de sua ambição. No final da vida, perambula sozinho pelos salões de sua mansão, cheios de espelhos que lhe devolvem mil vezes sua própria imagem de solitário: só sua imagem lhe faz companhia. Ele morre murmurando uma palavra: “Rosebud!”. Um jornalista tenta adivinhar o significado daquele último gemido, mas não consegue. Na realidade, “Rosebud” é o nome escrito num trenó com o qual Kane brincava quando criança, na época em que ainda vivia cercado de afeto.

Aquele trenó, símbolo das mais doces relações humanas, era o que Kane queria, a vida boa que havia sacrificado para conseguir milhões de coisas que na realidade não serviam para nada. No entanto, a maioria das pessoas o invejava. Kane conseguiu tudo o que tinha ouvido dizer que faz uma pessoa feliz: dinheiro, poder, influência, servidão. E acabou descobrindo que, dissessem o que dissessem, faltava-lhe o fundamental: afeto e respeito autênticos e o amor de pessoas livres.

Obcecado por conseguir coisas e dinheiro, Kane tratou as pessoas como se fossem coisas. Considerava que isso conferia poder sobre elas. Grave simplificação: a maior complexidade da vida é justamente o fato de as pessoas não serem coisas. Nós usamos as coisas enquanto nos servem, e depois as jogamos fora. Kane fez o mesmo com as pessoas que o cercavam e tudo parecia correr bem. Assim como possuía as coisas, Kane propôs-se a possuir pessoas, a dominá-las e a manipulá-las a seu gosto. Assim se comportou com suas amantes, amigos, empregados, adversários políticos e com todos os bichos viventes. Sem dúvida, causou muitos danos aos outros, mas o pior é que desgostou seriamente a si mesmo.
Como não somos simples coisas, necessitamos de “coisas” que as coisas não têm. Quando tratamos os outros como coisas, como fazia Kane, o que recebemos deles também são coisas: quando espremidos, eles soltam dinheiro, nos servem (como se fossem instrumentos mecânicos), saem, entram, esfregam-se em nós ou sorriem quando apertamos o botão adequado. Mas dessa maneira nunca nos darão aqueles dons mais sutis que só as pessoas podem oferecer. Assim não conseguiremos amizade, respeito e amor.

Kane não se deu conta de que tinha deixado totalmente de lado aquilo que só outra pessoa pode dar: afeto sincero, carinho espontâneo ou simples companhia inteligente. Como Kane nunca pareceu importar-se com nada a não ser dinheiro, ninguém se importava com nada de Kane a não ser seu dinheiro. No final de sua vida, Kane reconhece que, se pudesse, trocaria seu armazém cheio de coisas caríssimas pela única coisa humilde – um velho trenó – que lembrava uma certa pessoa: ele mesmo, antes de se dedicar à compra-e-venda, quando preferia amar e ser amado a possuir e dominar.

Imagino que o desespero de Kane ao final da vida não se deu simplesmente porque perdeu o terno conjunto de relações humanas que tivera na infância, mas por ter-se empenhado em perdê-las e dedicado a vida inteira a estragá-las.

A trágica trajetória de Kane pode muito bem representar a biografia daqueles que acreditaram cegamente no poder do mercado. A crise financeira que atualmente nos assola é a ponta do iceberg do esfriamento das relações interpessoais, provocado pela artificialidade presente no mundo das coisas. O abalo mercadológico brindou a sociedade capitalista com a oportunidade de se ver no espelho e enxergar que o verdadeiro zero à esquerda é aquele que só pensa em zero à direita.

* Jornalista. Mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor do curso de Comunicação e Marketing da Faculdade Promove de Sete Lagoas/MG

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