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Nº 1636 - Ano 35
01.12.2008

opiniao

Carta a uma estudante negra

Claudia Mayorga

Cara Maria,

No último dia 20 de novembro, durante o evento realizado pelo Programa Conexões de Saberes e Educafro para comemoração do Dia da Consciência Negra, você me procurou e me contou algumas histórias. Uma delas foi sobre uma situação de racismo que sofreu quando assistia a uma aula no seu curso de graduação. Indignada, você me dizia o quanto se sentiu humilhada e constrangida ao ouvir o professor da disciplina que estava cursando falar barbaridades do seu povo, o povo negro, além do desprezo manifesto em relação à sua pessoa. Você me dizia da sua vontade de gritar, das suas tentativas de olhar para os lados, procurando alguma solidariedade, mas os que estavam ao redor pareciam não se importar com aquilo que era dito por aquele professor e que tanto lhe feria. Parecia que todos concordavam com aquelas afirmações; pelo menos o silêncio imperante levou-a a esta conclusão. Você me contou de outras lembranças, de situações em que também sofreu racismo e da sua esperança de que não encontraria situações como essa na universidade, de onde está afastada por acreditar que talvez não seja um lugar para você.

Enquanto falava, me recordava de várias outras histórias de estudantes negros e negras da UFMG que já ouvi. Sim, Maria, a sua história é a de muitos que vivem em condições de desigualdade em nossa sociedade e são tratados como inferiores e subalternos por sua cor e raça. Sim, o racismo está no cotidiano de todos nós, mesmo que alguns insistam em dizer que não enxergam nada disso e que o Brasil é o país da democracia racial.

Maria, essa realidade é deplorável e coisas importantes estão acontecendo em nosso país para transformá-la. Essa é a nossa esperança e muitos estão lutando por isso há bastante tempo. No mesmo dia 20 quando conversamos, dia também em que Zumbi dos Palmares morreu lutando pela dignidade e independência do povo negro em 1695, data em que se comemora a resistência do negro à escravidão e opressão, a Câmara dos Deputados aprovou projeto que reserva no mínimo 50% das vagas nas universidades públicas federais para estudantes que tenham realizado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Dentro desta cota, haverá ainda subcotas para beneficiar negros, indígenas e estudantes de baixa renda. No texto aprovado, as universidades teriam quatro anos para se adequar às cotas, e a divisão delas será feita de acordo com o percentual de negros, pardos e índios encontrados na população de cada estado em que se localiza a instituição de ensino.

Tal aprovação, fruto de luta histórica do movimento negro no Brasil e de outros atores que foram abraçando essa bandeira, nos coloca, uma vez mais, diante de uma reflexão acerca da democratização da universidade. Tal projeto, cujo próximo passo é a aprovação no Senado, reconhece alguns pontos fundamentais para a luta pela igualdade racial em nosso país, que gostaria de destacar aqui.

Reconhece que a democracia racial não é, de fato, uma realidade na sociedade brasileira e que somos um país racista onde milhares de negros vivenciam, todos os dias, discriminações, violências e humilhações como aquelas que me contou quando nos encontramos naquela quinta-feira. Reconhece que exclusões sociais e raciais mantêm pontos de interseção, mas possuem também especificidades que devem ser combatidas de formas distintas. Reconhece que a universidade tem reproduzido as exclusões dessa sociedade e tal fato se deu em favor da idéia de que a universidade deveria ser uma instituição acima da sociedade e das dimensões políticas e ideológicas, mas que agora deve se posicionar diante dessas mesmas desigualdades. Reconhece que a universidade pública precisa dos estudantes negros, tanto quanto estes precisam dela, de projetos e idéias novos e de um redirecionamento da curiosidade epistemológica, que foi sempre orientada pela visão da elite branca brasileira, e que esse novo olhar é fundamental para a promoção das transformações científicas necessárias. Reconhece que o número de negros professores universitários e pesquisadores credenciados em instituições de amparo à pesquisa é ínfimo no Brasil. Reconhece que as cotas raciais não visam compensar desigualdades do passado, mas confrontar as injustiças do presente, em que o acesso à universidade pública está franqueado a uma esmagadora maioria branca. Por fim, reconhece, Maria, que o problema do racismo no Brasil não é um problema de negros, mas de toda a sociedade.

Mas tal conquista não é o fim da luta, apenas o seu início. As cotas sociais e raciais não são uma solução irrestrita para as desigualdades no Brasil. Elas devem compor um conjunto de políticas de ampliação e fortalecimento da universidade pública, de qualificação e valorização do ensino fundamental e médio da rede pública e associar políticas de Estado que visem ao crescimento econômico, à geração de empregos e à distribuição de renda.

Temos uma longa caminhada pela frente. Espero, Maria, o dia em que vamos ver juntas essa sociedade reconhecer o valor do povo negro. Aquilo que outrora parecia um ruído qualquer incomodando os ouvidos de alguns, aquilo que parecia inconveniente e fora do lugar será reconhecido como a voz de um povo que denuncia há anos suas opressões e resiste bravamente ao lugar do desigual! Espero ver essa sociedade reconhecer que podemos ser um país melhor se construirmos uma universidade mais plural e democrática!

Felicidades,

Claudia

* Professora do Departamento de Psicologia da Fafich e coordenadora do Programa Conexões de Saberes na UFMG

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