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Nº 1636 - Ano 35
01.12.2008

A filosofia encara o tabu

Coletânea de textos revela como Platão, Aristóteles e outros pensadores enfrentaram a questão do suicídio

Itamar Rigueira Jr.

Foca Lisboa
Rey Puente
Rey Puente: suicídio passou a ser associado à idéia de homicídio no século 17

Ética, moral, liberdade e valor da vida são questões fundamentais e que estão intimamente ligadas ao pensamento em torno do suicídio. Essa relação torna o assunto obrigatório para a filosofia, segundo o professor Fernando Rey Puente, do Departamento de Filosofia da Fafich. Com essa motivação, somada a um interesse antigo pelo tema, ele criou uma disciplina optativa e organizou o livro Os filósofos e o suicídio, lançado neste semestre pela Editora UFMG.

Em sua introdução à série de pequenos textos, Rey Puente explica que o termo “suicídio” surgiu no século 17, associando a noção de retirar-se da vida com a idéia de homicídio. Na Antiguidade, o suicídio não era visto dessa forma. Platão, por exemplo, aceita o ato em situações especiais. Para ele, os homens são como soldados que não podem deixar seus postos – se a vida nos foi dada, não podemos decidir deixá-la; Aristóteles, com argumentos menos religiosos, defendia o compromisso do homem com a “cidade”, que seria rompido por quem decidisse voluntariamente se matar.

“Platão não considerava o suicídio lícito quando motivado por covardia, mas admitia a possibilidade no caso de autorização de instância superior, o que ajudou a justificar o suicídio de Sócrates, que aceitou a condenação e bebeu cicuta”, explica Rey Puente, graduado em Psicologia, mas que construiu sua carreira acadêmica na área de filosofia, chegando ao título de pós-doutor.

A partir do século III a.C., os estóicos introduzem uma inovação do ponto de vista moral. A vida e a saúde eram consideradas dimensões indiferentes – nem boas nem más. Para o romano Lucio Aneu Sêneca, a vida é preferível à morte, mas esta não é uma postura obrigatória. Portanto, a decisão sobre a própria vida depende das circunstâncias: um sábio que se encontrasse escravizado ou doente, logo impedido de ser virtuoso, tinha todo o direito de optar por não mais viver. Como a força dos estóicos pedia uma resposta da religião, Santo Agostinho condenou a morte voluntária invocando o sexto mandamento,“Não matarás”. Estava fundada uma das bases morais para a associação entre matar-se e cometer um crime.

“Não-ser”

Na Idade Média, Santo Tomás de Aquino apenas reelabora a posição de Agostinho, e no Renascimento, Michel de Montaigne traz de volta os estóicos, negando que o suicídio significasse necessariamente derrota ou pecado. Mais tarde, Jean-Jacques Rousseau e David Hume reforçam a visão de Montaigne, recorrendo à literatura não-cristã para defender, em alguns casos, a nobreza moral do indivíduo que comete o suicídio. Em sua explanação cronológica, Fernando Rey Puente chega a um caso, segundo ele, raríssimo na história da filosofia. No século 19, o alemão Phillip Mainländer, em um tratado sobre o “não-ser”, faz apologia do suicídio como opção filosófica racional – e se mata, com pouco mais de 30 anos, ao receber seu trabalho impresso.

Embora ausentes da coletânea organizada pelo professor da Fafich, em função de limitações impostas por direitos autorais, escritores do século 20 são mencionados por Rey Puente em seu texto de abertura. O judeu Ludwig Landsberg viveu pessoalmente o dilema em torno do suicídio. Capturado pelos nazistas, recusou-se a tomar o veneno que muitos judeus em fuga levavam em um frasco. Landsberg havia se convertido ao cristianismo, como conta Rey Puente, e acabou morrendo num campo de concentração, em 1944. “Mas em seus escritos ele não usa o argumento dos soldados de Deus. Prefere o exemplo do martírio de Jesus”, explica o professor.

O franco-argelino Albert Camus, cuja obra explora a idéia do homem “estrangeiro” em um mundo incompreensível, pregava a opção por viver, ainda que tudo pareça absurdo. Quanto ao romeno Emil Cioran, que abordou com freqüência o tema do suicídio em sua obra, e admitiu que desejou matar-se diversas vezes, é possível inferir que a necessidade de falar sobre o assunto e a naturalidade com que o fazia impediram que ele concretizasse o que considerava uma alternativa real. “Meditar sobre ele {o suicídio} torna-nos quase tão livres quanto o ato mesmo”, escreveu Cioran, morto em 1995, aos 84 anos.

Livro: Os filósofos e o suicídio
Autor: Fernando Rey Puente
Editora UFMG
193 páginas
R$ 25