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Nº 1663 - Ano 35
17.8.2009

opiniao

Uma intelectual em busca de justiça

Marcos Fabrício Lopes da Silva

Em Épuras do social, Joel Rufino dos Santos afirma acreditar que o intelectual ainda pode ser um grande agente transformador da sociedade, desde que articulado com os pobres. Para tanto, o intelectual deve agir como “trabalhador da cultura ampliada”, disponibilizando-se a estimular “processos culturais autônomos” e, assim, a trabalhar para e com os pobres, sendo estes compreendidos como sujeitos na História. À lista de intelectuais destacados pelo historiador, tais como Lima Barreto, Arthur Bispo do Rosário, Carolina Maria de Jesus, Milton Santos, que se empenharam em desarticular os mecanismos seculares de segregação social em nosso país, acrescentaria outros nomes, como o da escritora Clarice Lispector (1920-1977). Na esteira das proposições de Rufino, considero que a autora de A hora da estrela exerceu com perspicácia e destemor os papéis de “trabalhadora da cultura ampliada” e “intelectual do povo em potência”.

À época do Estado Novo (1937-1945), período autoritário da Era Vargas, Clarice desenvolveu uma espécie de manifesto público no qual explicitou sua posição incompatível com o consenso formado em torno do regime, adotando uma postura independente ao considerar que acima da pátria ou de qualquer representação afim estava seu compromisso com a verdade. Trata-se da monografia “Observações sobre o fundamento do direito de punir”, publicada pela revista A Época (1941). Naquele trabalho acadêmico, Clarice questiona o sentido do direito de punir, num momento em que vigorava intensa repressão contra os inimigos do regime e a anulação das liberdades democráticas e dos direitos: “Não há direito de punir. Há apenas poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele [...] O que é certo, na questão da punição, é que determinadas instituições em dada época, sentindo-se ameaçadas em sua solidez com a penetração de determinados atos, taxa-os como puníveis; muitas vezes nesses atos não há nem a sobra de um delito natural: essas instituições querem apenas se defender”.

Clarice retoma os questionamentos dos tempos da Faculdade de Direito, sobre o papel de punir, ao se posicionar publicamente diante da morte de um conhecido bandido carioca numa ação policial. Isso ocorreu na crônica “Mineirinho”, que ganhou as ruas por meio da revista Senhor, em junho de 1962. Contrariando o senso comum e a lógica de que a polícia, por representar o aparelho repressivo do Estado, tem sua atuação pautada pelo uso da violência legítima, Clarice reafirma o necessário respeito aos direitos fundamentais do cidadão – como direito à vida e à integridade física. Denuncia a violência que serve aos interesses da sociedade especialmente nos casos de crimes contra o patrimônio e na repressão às “classes perigosas”. Interessava mais à cronista “contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes”, devido à brutalidade dos policiais que, nesse episódio, não se comportaram como agentes civilizados, sendo mais bárbaros do que o próprio bandido. Clarice conta como reagiu à truculência: “Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”.

Nessa revelação, a cronista expõe que faltou aos policiais perceber Mineirinho na qualidade de alguém integrado à sociedade, e não como elemento estranho a ela. Para além do princípio de tolerância, que significa apenas “suportar” o outro com “distanciamento”, Clarice optou pela política do acolhimento para compreender a questão. Dentro desta linha, deu-se a identificação da escritora com a vítima da truculência policial. Assim, a intelectual ultrapassou a abordagem assistencialista no tratamento aos pobres e, a partir de uma atitude solidária, compreendeu como eles são as “vítimas preferenciais” de uma arquitetura da destruição projetada pelo “poder de punição” do Estado. Mineirinho foi exterminado pelos adeptos do nazismo jeca, que abusaram da condição de defensores da moral e dos bons costumes para agirem com atrocidade.

Na correção dessa rota autoritária, Clarice destacou a necessidade de uma filosofia jurídica pautada por um humanismo dialético, ou seja, “uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento. Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente”.

Esses preceitos jurídicos salientados por Clarice Lispector poderiam muito bem ser levados em conta no atual debate sobre a reforma do Judiciário. Existem na crítica da escritora argumentações contundentes que demonstram que a dinâmica igualitária, em muitos casos, não ultrapassou no Brasil a projeção teórica, predominando, para a maioria, a condição de párias, isto é, de indivíduos postos à margem da sociedade por não fazerem parte da ideia de ordem recorrente no imaginário alimentado pelas elites no poder.

* Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG

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