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Nº 1663 - Ano 35
17.8.2009


“A ciência pede uma ética secular”

Ana Maria Vieira

Coordenador do colóquio que se abre nesta segunda-feira, na UFMG, Ivan Domingues reflete, nesta entrevista ao BOLETIM, sobre as linhas de pensamento adotadas no debate sobre os impactos da biotecnologia na vida humana. Professor de filosofia na federal mineira, o pesquisador, dedicado a temas ligados à teoria do conhecimento, filosofia da técnica e à relação entre ética e conhecimento, observa que, no país, a discussão sobre o tema ainda é incipiente e credita o problema à pouca tradição do ensino superior entre nós. “A universidade no Brasil mal tem 100 anos”, observa.

A ética sempre vai estar em conflito com a ciência?

Precisamos tomar cuidado quanto a isso. No evento da UFMG, o esforço é pensar a ética das – ou para as – novas biociências e a condição humana. Creio que, para compreender o problema, temos de considerar as ciências e as tecnologias, ou tecnociências, como um sistema. A dependência entre as tecnologias e as ciências é enorme, por exemplo, nas áreas de exatas e biológicas. Essa relação possui feedback, logo, temos aí um sistema dinâmico. Isso leva a pensar as tecnociências como uma força social, sistema que põe um poder extraordinário nas mãos dos seres humanos, ampliando o horizonte de sua ação e convocando a ética a se pronunciar sobre muitas questões, como a seleção de sementes e o melhoramento genético. Quando a ciência é isolada da tecnologia, o que entra em jogo? A ciência tem várias dimensões: é um discurso, uma experiência, uma ação e uma instituição. Se reunirmos todas essas dimensões, é possível pensá-la com pertinência em toda a sua extensão. Fica claro que a ética vai entrar em vários lugares. Logo, aquela ideia segundo a qual a ciência é isenta de valores, neutra e desinteressada se despedaça. Com o advento das tecnociências, isso não faz sentido. Ciência é uma força social. Produz tecnologia, interfere no mundo humano e tem implicações de toda sorte. O tema da neutralidade e da isenção possui abrangência muito limitada. É possível neutralizar todos os valores? Não. Os valores epistêmicos estão subjacentes e comandam essas operações: a busca da verdade, a exigência de objetividade e a noção da ciência como um bem da civilização. É possível neutralizar valores ideológicos, políticos, morais, mas não os valores epistemológicos. Por esse motivo, muitas vezes o debate entre ética, ciência e tecnologia é deslocado e confuso.

Que vertente comanda a visão contemporânea?

A moral utilitarista, pragmatista, ganhou o debate e se impôs nas atividades científicas. Não sei se é a melhor moral, mas a maioria dos cientistas, sabendo ou não, a segue. E este evento aqui na UFMG será a oportunidade para discutir esta moral e outras.

Mas ela se impôs também sob o argumento de serem as biotecnologias um direito do ser humano. Assim, não desenvolver uma linha de pesquisa envolve arcar com as consequências de não proporcionar solução para uma dor humana...

Há, sim, essa dimensão, que procura dar uma mensagem humanista ao processo. Só que, no meu modo de ver, ela é meio enviesada. A moral utilitarista, no sentido estrito, é consequencialista – se pauta pelo exame do custo-benefício envolvendo as consequências das ações. Mesmo dentro do utilitarismo nem sempre é claro que a tecnologia é algo bom, pois ela pode resultar em coisas ruins. Além do mais, há outras éticas que disputam com a moral utilitarista e que são importantes.

Poderia citá-las?

A moral deontológica kantiana seguida por muitos intelectuais põe o dever acima do cálculo. Muitas vezes vê nas ações das biotecnologias algo perigoso, porque pode levar à instrumentalização do ser humano. Aí a discussão fica acirrada. O extremo oposto do consequencialismo é a deontologia.

E as demais linhas?

Entre esses dois extremos há outras morais. Como as morais neoaristotélicas prudenciais. Elas não examinam só o custo-benefício; pautam as decisões com base em outros princípios. Além do tema da qualidade de vida e do bem-estar, compartilhado com as morais utilitaristas, elas estão associadas à prudência. As morais prudenciais são extremamente fortes e hegemônicas nos comitês de ética, que seguem o princípio da precaução. E há aí uma nuance: precaução é diferente de calcular custo-benefício.

Qual a questão central do debate entre elas?

O que está em jogo é o seguinte: como pensar uma ética para essas situações novas geradas pelas tecnociências, sabendo que a antiga ética está defasada? Por isso, é preciso carregar no neo: neokantiano, neoaristotélico... A velha ética passava ao largo da ciência e da tecnologia e, até o início da era moderna, era muito influenciada pela ética religiosa. Isso afeta o debate até hoje e pode levar a impasses incontornáveis. A ciência e a tecnologia pedem uma ética secular.

Ética é a solução?

A minha preocupação é que hoje se pede ética para tudo. Mas pode haver uma grande frustração. A ética não é poderosa assim, não vai ter esse poder de regular as ações humanas. Há outras dimensões importantes, como o direito e a política.

No Brasil parece haver uma lacuna de uma filosofia pública nesse debate. Isso ficou claro no caso das discussões das células-tronco embrionárias...

O Brasil chegou um pouco tarde a essas discussões. Por um lado, é preciso considerar que nossas universidades mal têm 100 anos e a pesquisa forte mal chega aos 40 anos. Por outro lado, não podemos ignorar que a questão religiosa vem travando esse debate ao longo do tempo.

Trazendo Habermas à discussão, como pensar a liberdade do homem enquanto produto da técnica, de uma relação entre programado e programador? Isso é relevante?

Quando falo que há uma discussão deslocada que muitas vezes confunde, penso também em Habermas, que diz que a tecnologia acaba com a liberdade, com a autonomia do indivíduo, e coloca-o nas mãos do grande programador. É uma maneira pessimista de ver as coisas. Entendo que é bastante confusa a articulação que ele faz entre a ética do discurso e a ética da espécie ao voltar com a natureza humana.

A crítica dele de uma eugenia liberal descarta a ação do Estado, mas põe em relevo o desejo individual...

Porque o Estado não é nazista. Eugenia, programação, isso pode existir em toda parte. Mas a experiência totalitária não pode ser desprezada. Ela pode voltar.

O que o leva a ter essa percepção?

Pode ocorrer, não estou falando que isso ocorrerá. Mas o problema não será resolvido com base em uma eugenia liberal, em que o indivíduo vai ao supermercado e compra o seu melhoramento, sua seleção, sua prole. Sob esse aspecto, a reserva de Habermas faz sentido.