Busca no site da UFMG

Nº 1683 - Ano 36
22.2.2010

Emaranhado de cores e palavras

Ensaio publicado pela Editora UFMG associa as pinturas de Clarice Lispector a sua obra literária

Itamar Rigueira Jr.

Entro lentamente na escrita assim como já entrei na pintura. É um mundo emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras.

Nesse trecho de Água viva (1973), Clarice Lispector sugere, bem a seu modo, a maneira como se aproximam sua escrita e a pintura abstrata. Linguagem fragmentada, sintaxe inquieta, predomínio do fluxo de consciência são características de seu texto e compõem uma estrutura absorvida por sua pintura pouco conhecida.

“Os críticos reconhecem também desde a estreia de Clarice, com Perto do coração selvagem (1943), uma desordem no jeito de representar, a metalinguagem que ratifica o processo experimental de criação, e isso aparece também em seus quadros, em que as camadas de tinta são espessas, desordenadas, e as cores não cobrem toda a base da madeira”, afirma Ricardo Iannace, que lançou recentemente, pela Editora UFMG, Retratos em Clarice Lispector – Literatura, pintura e fotografia.

O livro analisa 22 pinturas de Clarice Lispector (19 delas em madeira, as outras em tela) e as relações dessa obra com sua literatura e as referências que ela desfia em seus textos. Professor da Faculdade de Tecnologia de São Paulo (Fatec), Iannace ressalta que a artista nunca se considerou uma pintora no sentido pleno, e que sua pintura é livre, desprovida de técnicas. Segundo ele, as peças “esboçam um mundo estranho, sinistro, indigesto, largamente identificado com o fantasmagórico”, características sugeridas pelos próprios títulos de algumas obras, como Medo, Sol da meia-noite, Explosão, Escuridão e luz: centro da vida e Perdida na vaguidão.

Quanto às interseções entre os textos e a produção pictórica de Clarice, Iannace lembra o grande fascínio da artista pelo “desvio da forma, pelo ingresso num terreno oculto, inóspito, de difícil classificação”. O objetivo seria lançar o leitor e o espectador “para o abismo, inserindo-o num território nauseante, grotesco”. Nesse sentido, o pesquisador relaciona o romance A paixão segundo G.H., de 1964, que trata de uma barata, com a pintura Caos, metamorfose, sem sentido, que mostra borboleta, ovos disseminados, casulo – “nada aprazível aos nossos olhos”.

Razão e loucura

O universo de Clarice Lispector começou a ser explorado por Ricardo Iannace há vários anos: ele pesquisou o repertório de leituras da autora e de seus personagens para o mestrado e publicou, em 2001, A leitora Clarice Lispector (Edusp). O livro recém-lançado, por sua vez, reproduz a tese de doutorado, desenvolvida também na USP. O trabalho é uma incursão por autores que exploram a pintura – como Balzac, Gogol e Mallarmé – e utiliza também em sua análise traduções de Clarice para O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e o conto O retrato oval, de Edgar Allan Poe.

Caos, metamorfose, sem sentido (1975): técnica mista sobre madeira

“É interessante conhecer sua relação com narrativas marcadas pelo mistério e pelo sobrenatural”, diz Iannace. “Nessas obras, é impossível precisar os limites entre razão e loucura. E não há dúvida de que questões como as do duplo, da sombra e da identidade e sua representação ocupam o imaginário e espraiam-se pela obra de uma grande escritora como Clarice Lispector”, acrescenta o pesquisador.

O ineditismo do livro não reside apenas na abordagem, mas também no fato de reproduzir, em conjunto, as 22 pinturas conhecidas de Clarice Lispector. Elas pertencem aos acervos da Casa de Rui Barbosa (a grande maioria) e do Instituto Moreira Salles, e duas telas foram presenteadas aos escritores e amigos Autran Dourado e Nélida Piñon.

Segundo Ricardo Iannace, as peças trazem expressão nada convencional: a maioria delas, produzidas sobre pinho-de-riga (30cm x 40cm, aproximadamente), se constitui de mistura de óleo, canetas esferográfica e hidrográfica; algumas utilizam também cola líquida e vela derretida. “Os quadros apresentam aspectos como a corrosão, a repetição, o que não é desprendido da narrativa da autora. E são desenhos rudimentares, longe de um alto padrão estético”, diz Iannace. “Se não fosse assim, não seria Clarice”, ele completa.

Livro: Retratos em Clarice Lispector – Literatura, pintura e fotografia
De Ricardo Iannace
Editora UFMG
181 páginas / R$ 36