Busca no site da UFMG

Nº 1692 - Ano 36
26.4.2010

opiniao

Tragédias urbanas, planejamento e justiça

Jupira Gomes de Mendonça*

Os recentes acontecimentos que atingiram as favelas do Rio de Janeiro representam aquilo que o professor Luiz César Ribeiro (UFRJ) chamou de “a tragédia da gestão das cidades”, qual seja, o abandono do planejamento urbano e a utilização da cidade como recurso das máquinas eleitorais, com crescente tolerância a formas inadequadas de uso e ocupação do solo urbano.

O movimento constituinte de 1988 configurou poderoso momento de resgate da ideia de que a cidade, se deixada a cargo dos interesses privados, é ela própria objeto de lucro e fonte de enormes desigualdades socioeconômicas e territoriais. Passados mais de 20 anos, importantes avanços na legislação urbanística e ambiental foram conquistados, ainda com pouca correspondência, no entanto, com a disseminação de novas práticas de planejamento e gestão de cidades. É verdade que não podemos ignorar algumas notáveis exceções que confirmam a regra, entre elas: experiências de gestão democrática dos recursos públicos (ou pelo menos de parte deles), como o orçamento participativo em vários municípios; novas formas de incorporação dos recursos hídricos à cidade, como se pode ver em Ipatinga (MG), onde o saneamento dos cursos d’água derivou na criação de um parque público ao longo do ribeirão que corta a cidade; monitoramento permanente e planejamento de intervenções preventivas e corretivas em assentamentos habitacionais de risco geotécnico e ambiental, observados em Belo Horizonte desde meados da década de 1990.

A contraface desses exemplos é uma outra forma de gestão urbana, denominada por David Harvey de empreendedorismo urbano, que prioriza uma visão de curto prazo e a intervenção em partes da cidade, por meio de grandes projetos, visando transformá-la em vitrine para atração de capitais e de turistas. Soma-se a isso a resistência ao modelo centralizador do período ditatorial, que resultou em políticas localistas e competitivas, que minam a viabilidade de estratégias regionais e metropolitanas de pensar e intervir no espaço urbano em médio e longo prazo, visando à redução das disparidades.

Os desabamentos, soterramentos e inundações que vimos presenciando são intoleráveis, são frutos dessa outra tragédia, que é a forma como as elites brasileiras vêm gerindo as nossas cidades.

Planejamento urbano, no quadro constitucional vigente, significa o controle social permanente sobre o uso e a ocupação do solo urbano e os processos de expansão da cidade. Significa a circunscrição do direito de propriedade à função social do solo. Significa também pensar de forma integrada a ocupação e o sítio natural. Algumas tragédias escapam ao controle humano (além da previsão antecipada de sua ocorrência, que pode permitir ações de fuga), como são os terremotos e os tsunamis. Outras, no entanto, são consequências diretas da ação de governos atrelados a interesses privatistas, sejam econômicos, sejam políticos, no pior significado da palavra. Os desabamentos, soterramentos e inundações que vimos presenciando são intoleráveis, posto que, mais que desnecessários, são frutos dessa outra tragédia, que é a forma como as elites brasileiras vêm gerindo as nossas cidades.

A política de urbanização de favelas implementada em Belo Horizonte a partir de meados da década de 1990, mesmo sujeita à crítica e à necessidade de avanços, pode ser tomada como caso positivo para exemplificar algumas das questões aqui abordadas. Em primeiro lugar, porque faz parte de uma política habitacional que vai além da simples construção de novas unidades habitacionais e reconhece o direito de posse e permanência de populações que habitaram espaços outrora desprezados pelo chamado “mercado formal”, por absoluta impossibilidade de morar de outra maneira. Em segundo lugar, por abranger um projeto de monitoramento constante dos riscos geológicos e geotécnicos dessa ocupação. O desenvolvimento dessa política deverá obviamente passar pela discussão de critérios técnicos e sociais e pela revisão de princípios de projeto, no sentido de priorizar as formas culturais de vida cotidiana e de autogestão desses espaços. Mas, sem dúvida, o princípio mais geral de melhorar a qualidade de vida dessas populações, garantindo a sua localização em espaços centrais da cidade, é exemplar no contexto brasileiro.

No Brasil, a apropriação pública da valorização do solo decorrente dos investimentos públicos e a inversão das prioridades nos gastos públicos ainda estão no plano das ideias. A sua prática requer políticas de Estado (e não apenas de governos) orientadas para a justiça socioespacial, formuladas a partir do planejamento permanente e de longo prazo e controladas pela sociedade como um todo. Na esfera urbanística, requer pensar a ocupação do solo a partir da configuração das bacias hidrográficas, regular a implantação das atividades urbanas coibindo impactos negativos e promover ações corretivas, o que demanda conhecer a cidade, monitorar o seu crescimento e regular a ação privada, reconhecendo o enorme passivo social gerado por mais de 500 anos de gestão patrimonialista e individualista.

*Professora da Escola de Arquitetura (Departamento de Urbanismo e Programa de
Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo), pesquisadora do CNPq e da Fapemig,
integrante do Observatório das Metrópoles/ CNPq e membro da equipe da UFMG que
elabora o Plano de Desenvolvimento Integrado da RMBH.

Esta página é reservada a manifestações da comunidade universitária, através de artigos ou cartas. Para ser publicado, o texto deverá versar sobre assunto que envolva a Universidade e a comunidade, mas de enfoque não particularizado. Deverá ter de 4.000 a 4.500 caracteres (sem espaços) ou de 57 a 64 linhas de 70 toques e indicar o nome completo do autor, telefone ou correio eletrônico de contato. A publicação de réplicas ou tréplicas ficará a critério da redação. São de responsabilidade exclusiva de seus autores as opiniões expressas nos textos. Na falta destes, o BOLETIM encomenda textos ou reproduz artigos que possam estimular o debate sobre a universidade e a educação brasileira.