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Nº 1692 - Ano 36
26.4.2010


Por uma história cotidiana
da Antártica

Ana Maria Vieira

Na segunda semana de março, grupo de pesquisadores brasileiros, coordenados pelo professor da UFMG Andrés Zarankin, especializado em arqueologia histórica, retornou ao país após dois meses na Antártica, realizando escavações em sítios locais. Interessados em coletar o que denominam lixo de antigos viajantes à região, os integrantes do grupo iniciam, nos próximos dias, nova etapa de trabalho dedicada a delinear as estratégias humanas de ocupação da Antártica, por meio desses objetos. “Eles formam uma coleção única no Brasil”, diz Zarankin, nesta entrevista ao BOLETIM UFMG, lembrando que o trabalho oferece oportunidade especial de visibilidade para a pesquisa que se faz no país.

Poderia descrever o conjunto dos materiais coletados?

As amostras coletadas são muito significativas, já que oferecem panorama diversificado do cotidiano dos antigos donos. Foi recuperada grande quantidade de ossos, metal, tecido, vidro e cerâmica, incluindo sapatos e cachimbos, configurando objetos de função diversa: vestimenta, alimentação, trabalho e lazer. Esse material, que forma coleção única no Brasil, é proveniente dos sítios arqueológicos Sealer 3 e Sealer 4, localizados na península Byers, ilha Livingstone, nas ilhas Shetlnad do Sul. Também foi identificado um novo sítio arqueológico, o Praia Sul 2, até então submerso em uma lagoa.

Qual é a complexidade do trabalho de escavação na Antártica? Como será a preservação desses objetos em temperaturas mais altas?

A Antártica oferece condições extremas para o trabalho arqueológico, com temperaturas oscilando entre -10ºC e 5ºC, paisagens sempre em transformação (com a presença intermitente de animais, neve e gelo) e o isolamento do restante do mundo. Isso significa que devemos sempre estar preparados para contínuas mudanças, trazendo respostas flexíveis. Por outro lado, a temperatura do local funciona como uma espécie de “freezer”, promovendo excelente preservação dos materiais arqueológicos. Para que continuem bem preservados no Brasil, necessitaremos de infraestrutura para manutenção de baixas temperaturas, assim como conservação e restauro especializado – que são os próximos desafios do projeto. Já recebemos auxílio do CNPq para equipamento e buscamos apoio para a construção do espaço físico para pesquisa em Antropologia e Arqueologia Polar na UFMG.

O que norteou a seleção dos objetos que estão trazendo ao país?

As coleções arqueológicas são compostas pelo lixo dos grupos passados, que, com o tempo, passa a ter valor na nossa sociedade. É por meio desse lixo que podemos nos aproximar da vida das pessoas, de modo que todo objeto recuperado arqueologicamente e que se associa ao ser humano é de interesse para a pesquisa arqueológica. Portanto, interessa-nos mostrar ao público que a Arqueologia estuda não os tesouros, a elite ou objetos de beleza estética, mas potencialmente todo e qualquer objeto que informe sobre as pessoas, grupos e sociedades.

Os objetos serão mostrados ao público?

Esperamos que esses materiais, uma vez estudados e conservados, e associados a informações e interpretações, configurem uma exibição destinada também ao público em geral, além da produção de publicações acadêmicas.

Os vestígios encontrados permitem reconstruir qual história daquele continente?

O projeto se preocupa com a construção de uma história alternativa às histórias oficiais da ocupação da Antártica. Enquanto a história oficial relata detalhes das grandes e pioneiras viagens exploratórias, sob a perspectiva dos capitães e grandes financiadores, essa história alternativa integra aquelas pessoas que se ocupavam dos afazeres cotidianos da exploração no próprio local. Essas pessoas são mantidas invisíveis nas histórias oficiais, quando, na verdade, eram centrais no processo exploratório.

Por que Antártica?

A Antártica foi o último grande território a ser ocupado pelo ser humano, entre final do século 18 e início do século 19. Esse período implica a existência de um sistema capitalista já consolidado e, como na região não havia outros grupos humanos, o estudo se torna potencial para a compreensão da lógica de ocupação e exploração do território pelo capitalismo. Além disso, o simples fato de haver histórias não contadas sobre a presença humana no local já apresenta um desafio à Arqueologia, e a visibilidade internacional do estudo antártico oferece oportunidade significativa para mostrar a capacidade da pesquisa brasileira.

Quais os próximos passos do grupo? Pretendem retornar à Antártica?

O projeto é de longa duração, e estão asseguradas, pela aprovação no edital Proantar do CNPq, ao menos mais duas viagens à Antártica, de modo que os trabalhos de prospecção e escavação prosseguirão. Atualmente, nossa linha de pesquisa está orientada para o estudo do cotidiano dos caçadores de mamíferos marinhos, em temas como a passagem do tempo, espaço e paisagem, organização hierárquica, dieta, vestimenta, entre outros.