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Nº 1718 - Ano 37
08.11.2010

opiniao

Pegada ECOLÓGICA versus “ECONOMIA verde”*

José Eli da Veiga**

Acaba de sair o mais completo balanço da insustentabilidade: o Relatório Planeta Vivo 2010. Essa é a oitava edição do documento que mais notabilizou a Pegada Ecológica, publicado a cada dois anos pelo WWF-Internacional (World Wide Fund For Nature), com a
Zoological Society of London (ZSL) e a Global Footprint Network (GFN).

Esse balanço entre a pressão humana sobre a natureza e sua capacidade regenerativa (ou “biocapacidade”), que surgiu no início dos anos 1990, na Universidade de British Columbia, em Vancouver, resultou de pesquisa do ecólogo William E. Rees. A metodologia foi consolidada em 1994, em tese de doutorado de um de seus alunos, o engenheiro suíço Mathis Wackernagel. Em seguida foi publicada em coautoria no livro “Our Ecological Footprint” (New Society Press, 1996). No entanto, por ter despertado grande interesse, proliferaram cálculos pouco rigorosos, até que surgisse, a partir de 2003, a normatização do GFN, dirigido por Wackernagel.

É assustadora a principal revelação do oitavo relatório: em 2007 a sobrecarga imposta pelas atividades humanas foi 50% maior que a capacidade regenerativa do planeta. Além disso, o relatório também apresenta projeções com base em diferentes variáveis relacionadas ao consumo de recursos naturais, uso da terra e produtividade, graças a uma nova “Calculadora de Cenário de Pegadas”.

No cenário básico, a perspectiva não poderia ser mais tétrica: até 2030 a humanidade precisaria da biocapacidade de dois planetas Terra para absorver as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e manter o consumo de recursos naturais. Cenários alternativos, que pressupõem mudanças nos padrões de consumo e nas matrizes energéticas, ilustram quais seriam as ações imediatas capazes de reduzir o hiato entre a Pegada Ecológica e a biocapacidade.

No cenário básico, a perspectiva não poderia ser mais tétrica: até 2030 a humanidade precisaria da biocapacidade de dois planetas Terra para absorver as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e manter o consumo de recursos naturais

Três outros dados são cruciais. A biodiversidade global sofreu uma queda de 30% em menos de 40 anos, atesta o mais antigo indicador do WWF-Internacional, o IPV (Índice Planeta Vivo). Chegam a 71 os países com déficit em recursos hídricos suficiente para comprometer a saúde de seus ecossistemas, aponta seu mais novo indicador, o PHP (Pegada Hidrológica da Produção). Foi de 35% o salto das emissões de GEE desde o primeiro relatório, de 1998.

Todavia, há uma séria disparidade entre a excelência desses diagnósticos e o conteúdo do capítulo final – propositivo – intitulado “Uma economia verde?”. Dá a entender que a “economia verde” preconizada pelo WWF--Internacional está na linha da “estratégia de crescimento verde”, esboçada em maio pelo Conselho Ministerial da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e que se encontra em fase de consultas para que uma versão definitiva seja adotada em 2011.

É péssima essa versão preliminar da estratégia da organização porque tenta fazer de conta que o crescimento não constitui “dilema”, como evidenciou com muita clareza o relatório do governo britânico “Prosperity without growth?”. Os ganhos de ecoeficiência que reduzem a proporção de energia e de matéria em cada unidade de produto são mais do que compensados pelo aumento da população e de seus níveis e padrões de consumo. É a chamada questão da escala, evidenciada pelo contraste entre as fortíssimas reduções de intensidade de carbono das principais economias e o incessante aumento de suas emissões em termos absolutos.

Ora, pertencem justamente à OCDE os raros países que já poderiam planejar uma transição para a condição estável, pois suas populações deixaram de aumentar e a melhoria de sua qualidade de vida não depende mais de aumento da produção. Como mostrou o modelo macroeconométrico de Peter Victor para o caso do Canadá, descrito no livro “Managing without growth: slower by design, not disaster” (Edward Elgar, 2008).

Entre a manutenção da estabilidade social e a necessidade de reduzir o impacto das atividades humanas sobre a natureza, não existe saída simplista como pretendem os que especulam com essa ideia de um suposto “crescimento verde”. O dilema se impõe porque a pressão sobre os ecossistemas não cessa de aumentar com a expansão da economia: a desmaterialização não engendra alívio ecossistêmico.

Ao fazer de tudo para evitar o enfrentamento de um sério debate sobre o “dilema do crescimento”, a OCDE está compondo um verdadeiro “samba do crioulo doido”. É lamentável perceber, portanto, que o WWF-Internacional se deixa ludibriar por tamanha operação de autoengano.

Por último – mas não menos importante – o logro do “crescimento verde” esboçado pela OCDE também ignora as recomendações da Comissão Stiglitz-Sen-Fitoussi, feitas há exatamente um ano (www.stiglitz-sen-fitoussi.fr). Em curta nota de rodapé, mal reconhece a necessidade de superação dos atuais indicadores de desempenho econômico e de qualidade de vida. Chocante, pois foi decisiva a contribuição do Serviço de Estatísticas da OCDE para o sucesso do trabalho dessa Comissão.

*Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 19 de outubro
**Professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP)

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