Em primeira pessoa

Palco de diversas vivências e intersecção dos mais variados caminhos, a UFMG se consolidou como um espaço de produção e troca de saberes. Mais do que simbolizar uma estrutura para a valorização do conhecimento, a essência da Universidade possibilitou encontros, realizações pessoais e profissionais, que resultaram em histórias marcantes aos que passaram pela Instituição.

Para reunir esses depoimentos, criamos a galeria apresentada a seguir, com o objetivo de reunir as declarações de gratidão e a partilha de momentos que traduzem o sentimento que une os integrantes da comunidade universitária. O resultado é uma seleção de textos que relatam, em primeira pessoa, essa forte relação com a Universidade Federal de Minas Gerais ao longo dos seus 90 anos.

Foto: Maurício Boissou
RONALD CLAVER

A Revista Literária da UFMG é uma saudade que durou muitos e muitos anos e continua saudosa. Ela, na estante, é mais do que um quadro na parede que ainda dói.

Publicar na Revista Literária, quando estudante, era como ganhar o Oscar, o Pulitzer, o Prêmio Nobel, pisar na lua. Nós, estudantes, nos idos de 60 para 70, década que nunca terminou e continuará desafiando o calendário, sonhávamos com a glória. E glória tinha endereço e código postal. Depois era esperar pelo resultado e torcer.

Quem ganhará? A turma de Direito? Eram fortíssimos: Jaime Prado Gouvêa, Duílio Gomes, Sérgio Sant’Anna, Adão Ventura e outros bambas na arte do escrever. E a turma do Jornalismo? E o pessoal da Medicina, da Economia, da Filosofia? Todo mundo querendo o prêmio. O prêmio maior era ser publicado. Os estudantes que visitaram as páginas da Revista inicialmente viraram realidades, como Luiz Vilela, Luis Gonzaga Vieira, Walden Camilo de Carvalho, Humberto Werneck, José Márcio Penido, Regis Gonçalves, Vladimir Diniz e Plínio Carneiro.

E nós de Letras? Havia o Henry Corrêa de Araújo, que abocanhou os primeiros prêmios das edições iniciais, mas depois largou o barco e passou o legado para a turma do 7º andar da Fafich. Reuníamo-nos em função de um jornalzinho que criamos, o Talupa. No nosso time jogavam Léa Nilce Mesquita, Magda Frediani, Edgar Pereira, Fábio Madureira, Regina de Souza e outros poetas e contistas.

Seremos premiados? Era a pergunta angustiante e ansiosa.

A ditadura fazia alarde e publicávamos poemas-cartazes sem mencionar o autor. Publiquei o poema Diálogo, no quinto número da Revista Literária:

a guerra é antes
o silêncio dúbio
da paz
a bomba é antes
um lindo traço
no azul
o diálogo é antes
um grande conflito
do silêncio
a liberdade é antes
uma grande vontade
de palavra
o agora é antes
uma véspera tardia
do amanhã

O mundo explodia em ditaduras e revoltas. A paz era apenas uma palavra muda no jardim do arbítrio. O inimigo tinha olhos velados e se escondia atrás das portas secretas e perigosas. Nosso alvo, além de recuperar a democracia, era ser publicado pela Revista Literária e pelo Suplemento Literário de Minas Gerais, que saía todos os sábados.

Os anos 60 acabaram. A ditadura continuou mais feroz e infeliz. A literatura era o nosso palanque e passeata. O inimigo continuava o mesmo, e continuamos desafiando com palavras de rebeldia e metáforas o chumbo daqueles anos.

A Revista era editada pelo Serviço de Relações Universitárias da UFMG, e a comissão era nomeada pelo seu chefe, na época, Plínio Carneiro. P. Pontes era seu pseudônimo. Para resguardar a RL, havia um critério estranho: não aceitar trabalhos de cunho político-partidário e temas ofensivos à moral e à religião. Passamos a utilizar uma literatura metafórica e, nas entrelinhas, driblávamos a censura e a ditadura. E surgiram textos fabulosos e mágicos. Havia sempre uma segunda leitura.

Nos anos 70, passei de discente para docente, de selecionado passei a selecionar. Fui convidado a participar da comissão da Revista juntamente com Magda Frediani Martins, minha colega das Letras e do jornal Talupa. E Plínio Carneiro. Formamos um trio belo e poético. Plínio era o “faz tudo”. Era quem punha a Revista na rua. Conseguia a verba para os prêmios e garantia a permanência da publicação.

Naquele número, o sétimo, premiamos Sandra Lyon e Antônio Carlos Gomes da Costa, Regina Lúcia Ferreira Neves, Eugênio Gomes, Danilo Gomes, Ana Cecília Carvalho, Luiz Fernando Emediato.

Em 73, a comissão mudou novamente. Saiu Magda Frediani e entrou o professor e poeta Orlando Bianchini, e os premiados foram quase os mesmos do ano anterior: Ana Cecília Carvalho, Sandra Lyon, Danilo Gomes, Luiz Fernando Emediato e Eugênio Gomes. No ano seguinte, fui substituído pela professora Maria Antonieta Cunha.
Quando foi instituída a Revista Literária, dois de seus idealizadores, Luiz Vilela e Luis Gonzaga Vieira, afirmaram que, se a publicação não tivesse o apoio oficial da UFMG, ela não passaria do terceiro número. Revistas literárias têm vida curta. Nascem da abnegação de alguns, duram até o terceiro número e morrem. Às vezes, atingem o quinto número e desaparecem. Plínio sabia que a Revista Literária da UFMG tinha uma importância transcendental e que ela transcendia a si própria. Ela não morreu após o terceiro número. Durou quase 30 números.

Voltei em 78, e formei novo trio com Plínio Carneiro e Ana Maria de Almeida. Em 83, a Revista saiu da Reitoria e foi para o Centro de Extensão da Faculdade de Letras, que era comandado por Ana Maria de Almeida. Ficamos ela e eu e demos conta do recado. O Plínio foi assaltado por um AVC desavisado que o tirou do ar e o enviou às estrelas.

Novos talentos apareceram: Sônia Queiroz, Antenor Pimenta Madeira, Antonio Barreto, Sergio Coelho Medeiros, Lucia Castello Branco, Sandra Duarte Pena, Francisco de Morais Mendes, Roberto Barros de Carvalho. Na Faculdade de Letras, surgiu um novo Plínio: com garra e competência, Carlos Alberto Marques dos Reis tocou o barco devagar, como no samba do Paulinho da Viola, por longos anos. As comissões variavam. Lembro-me dos professores Valmiki Vilela, Luiz Cláudio Vieira de Almeida e do escritor Carlos Herculano Lopes.

Os anos passaram e continuei, os anos passavam, mas lá estava eu segurando o bastão. Os anos passaram, e fui ficando, ficando, até que veio a pá de cal, e o que era doce acabou. A RL deixou de existir materialmente, mas continua na parede da memória desafiando o tempo e revelando os poetas e contistas que contam e cantam a vida. Eles estão por aí semeando a paz da palavra paz, a liberdade e a vida.

O lançamento do número comemorativo dos 50 anos da RL, nesta semana, representa um triunfo dessa doce memória. Cinquenta anos não são cinco ou nove anos. São cinco décadas da palavra que conta literária e talentosamente a história da Universidade, de Minas e do Brasil.

Ronald Claver é professor aposentado do Colégio Técnico da UFMG. Escritor com mais de 20 obras publicadas e vários prêmios conquistados, entre os quais o Prêmio Nestlé e o Cidade de Belo Horizonte. Texto originalmente publicado na edição nº 1970 – ano 43 do Boletim UFMG, em 27 de março de 2017

Depoimento. Face/ UFMG
PROFESSOR LUIZ MACHADO

Foi com grande satisfação e boa dose de emoção que compareci ao evento de lançamento do CD e livro Grupo Mambembe – pequena história que virou canção. O livro, escrito pelo historiador, violonista e compositor mineiro Toninho Camargos e publicado pela Editora Recanto das Letras, conta a trajetória do grupo musical Mambembe, que encantou plateias de Belo Horizonte e de outras cidades mineiras, paulistas e gaúchas entre 1974 e 1981(eu estava lá!).

Integrante e um dos fundadores do grupo, o autor narra, com extrema delicadeza, a evolução do Mambembe e do movimento musical independente em Belo Horizonte nos chamados anos de chumbo. Uma história que se confunde, por vezes, com a própria história do movimento estudantil mineiro naqueles tempos difíceis. Um relato imperdível.

Adquiri o livro do Mambembe em uma noite de quinta feira, com direito à dedicatória do autor. Devorei suas 254 páginas, de uma só vez, na tarde chuvosa do sábado seguinte – clima perfeito, chuva e poesia combinam. Um pequeno excerto do capítulo 27 (Circuitos da liberdade) justifica o título do presente artigo:

No início dos anos 1970, as entidades estudantis passavam a incentivar o fim dos trotes, promovendo calouradas com extensas programações bem organizadas, que incluíam debates, exposições e apresentações artísticas.

Fui testemunha daquele movimento. Na época, até os estudantes secundaristas costumavam beber daquela fonte. Em 1974 (ou foi 1975?), eu era aluno do curso técnico de mecânica na Escola Técnica Federal de Minas Gerais (hoje Cefet-MG), quando, junto com o meu querido e saudoso primo Celinho,fui assistir a um show do Gonzaguinha, promovido pelo DCE da UFMG, no antigo teatro da Rua Gonçalves Dias (hoje Espaço Belas Artes de Cinema). Era tanta gente que não cabíamos todos. Imaginem que o próprio Gonzaguinha ajudou a organizar a bagunça, pedindo que alguns subissem ao palco ou ficassem sentados no chão logo à frente da primeira fileira de cadeiras. No fim, tudo deu certo. Foi muita sorte ver o nosso ídolo assim tão de perto, cantando e tocando o seu violão. Tempos depois, já como estudantes da UFMG, pudemos acompanhar muitos outros eventos artísticos promovidos pelos circuitos estudantis, entre os quais, alguns shows do Grupo Mambembe, contendo músicas e roteiros de altíssima qualidade criados por seus integrantes.

Quatro décadas depois, ainda estamos aqui, do outro lado da janela; agora sou professor. Definitivamente, não sou um saudosista. Longe disso, acho até que a geração de hoje, em muitos aspectos, é melhor que a nossa. Mas olhar o passado também é importante, há ensinamentos, coisas para se resgatar. Gosto muito da frase que permeia o DVD Meu tempo é hoje (2003), do Paulinho da Viola: “Não vivo no passado, o passado vive em mim”. Parafraseando o sambista, eu diria que hoje as calouradas dos anos 1970 vivem em mim. Eram eventos mambembes, organizados por entidades estudantis universitárias de todo o país, que recepcionavam os novos alunos com atividades culturais de alto nível. Vale aqui retomar o capítulo 7 do livro do Grupo Mambembe:

O trabalho cultural dos diretórios e centros acadêmicos nas universidades e faculdades brasileiras ganhava força diante, muitas vezes, das dificuldades ou até da impossibilidade de outras atividades políticas que marcassem essa luta. A promoção da cultura e da arte, particularmente da música popular, tornava-se um meio eficaz de sua ampliação.

Nos anos 1970, o trote cedeu vez à arte e à música, os cabelos raspados e a cara pintada deram lugar ao debate e à ampliação do entendimento político. Foi notável como o cerceamento das liberdades democráticas despertou e induziu, naqueles anos cinzentos, tamanha criatividade entre os estudantes.

Nos tempos de hoje, percebo que o trabalho cultural dos movimentos estudantis regrediu significativamente em relação aos anos 1970. O tempo dos trotes e das caras pintadas parece ter voltado, tomando o lugar da arte, do debate e do amadurecimento político. Não seria hora de olhar o passado e resgatar o que foi perdido? O movimento estudantil de ontem não poderia ser revivido nos tempos de hoje? Afinal, há tantos outros “Mambembes” Brasil afora, cada um querendo cantar seu grito, como aquele expresso nos versos da música Destinos, que finalizava o show Divisor de águas, do Grupo Mambembe, em 1978:

Vai meu canto por aí
Vai decidir o seu lugar
O direito de lutar
Pelo que é seu, que é seu lugar

O Grupo Mambembe constituiu parte importante da vida de muitos jovens e estudantes de Belo Horizonte que viveram nos anos 1970 e início dos anos 1980. Sua atuação foi marcante para a formação política e cultural de uma geração. Sinto que as calouradas da UFMG nunca mais foram as mesmas depois da sua extinção, em 1982. Deixo aqui o nosso carinho e agradecimento sincero a todos os seus integrantes por suas músicas, letras e textos irretocáveis. Um obrigado muito especial ao Toninho Camargos pelo belíssimo relato feito em seu livro. Ele e Cadinho Faria – outro fundador do grupo – foram o coração e a alma do Mambembe. Os dois integram o time dos grandes compositores da música popular brasileira.

Luiz Machado é professor do Departamento de Engenharia Mecânica da UFMG. O texto foi originalmente publicado na edição nº 1967 – ano 43 do Boletim UFMG, em 6 de março de 2017.

Foto de arquivo pessoal
LEITE VANGINEI SILVA (NEI XAKRIABÁ)

Muito interessante a iniciativa da UFMG, que tem contribuído, e muito, para nós, povos indígenas de Minas Gerais, com relação à valorização das culturas e geração de renda, abrindo-nos os olhos para as possibilidades de práticas sustentáveis. Uma pena que parece que com essa PEC (ele se refere à proposta de emenda constitucional 55/241, que limita os gastos públicos, aprovada em dezembro de 2016) vai diminuir e muito o ingresso de indígenas nas universidades.

Nei Xakriabá é graduado em Educação Indígena pela UFMG e participou da Formação Intercultural de Professores Indígenas. Na universidade, ministrou um dos módulos da disciplina Laboratório em Comunicação Social: artes e ofícios de saberes tradicionais, em 2014, e a oficina Cerâmica Xakriabá, do Festival de Inverno da UFMG em 2016.

Estudante, professor e diretor da Faculdade de Odontologia. Foto: Gabriel Araújo
EDGARD CARVALHO DA SILVA

Aos 93 anos, Edgard Carvalho da Silva preferiu conceder um depoimento oral em comemoração aos 90 anos da UFMG, já que é “de uma área que é menos dada à sociabilidade e às letras”.

Edgard é “dentista, puramente, em termos universitários”. “Só odontologia”, ele brinca. Mas uma breve pesquisa sobre sua história revela um cirurgião reconhecido, “sempre sério na profissão”, como ele enfatiza. Tem nove filhos, quatro dos quais seguiram seus passos na carreira, além de diversos netos.

“Eu nunca saí daqui. Nunca tirei o pé de Belo Horizonte para estudar a especialidade que escolhi”, relata Edgard Carvalho, que elege a UFMG como um dos motivos de ele ter conseguido chegar aonde queria. Ele foi estudante da Escola de Odontologia da então Universidade de Minas Gerais e professor e diretor da Faculdade de Odontologia da UFMG. Assumiu a responsabilidade pelo setor de atendimento odontológico do Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários (IAPC) e desempenhou as funções de cirurgião-dentista no Hospital Luxemburgo e no antigo Hospital Santa Mônica – onde criou o núcleo odontológico e de atendimento a traumas faciais de lá – e de clínico em consultório particular. Foi também presidente da Associação Brasileira de Odontologia e do Conselho Regional de Odontologia de Minas Gerais.

“Fiz o vestibular aqui, na Escola de Odontologia. O curso funcionava na Praça da Liberdade, com duração de três anos”, afirma Edgard, que formou-se na Licenciatura em Odontologia, em 1946. Permaneceu quatro anos como professor voluntário da unidade, logo após prestar os concursos que considera importantes para a sua profissão de dentista.

Aprovado em primeiro lugar para trabalhar no setor odontológico do IAPC, compartilha sua conquista com seus professores da graduação, que, curiosamente, prestaram o concurso com ele. “E aí foi aquela coisa fantástica, fabulosa, na minha vida profissional”, relembra. Por influência dos seus professores, que trabalharam com ele no setor e que considera “dois colegas que o ajudaram naquilo que ele queria”, Edgard decidiu se tornar docente também. E aos poucos conquistou o título de livre docente, doutor e catedrático, defendendo duas teses na Universidade.

Sobre sua relação futura com a UFMG, ele diz que a possibilidade de retorno é difícil. Mas deixa seu recado para a comemoração dos 90 anos da instituição: “Desejo que a universidade continue, por anos a fio, o que tem sido até agora. Com seriedade no ensino, competência dos docentes e coragem para enfrentar as dificuldades. Vida alegre, com fé! Compartilho da esperança de todos para que a UFMG continue cada vez brilhando mais.”

Suas carteirinhas, que ele guardava no bolso da camisa, de quando trabalhou no Hospital Luxemburgo (em segundo plano) e na UFMG (em primeiro). Foto: Gabriel Araújo

 

Norma de Melo, Ph.D, Emérita do ICB/UFMG.
PROFESSORA MARIA NORMA DE MELO

UFMG 90 anos, que alegria!

Professor Jaime Arturo Ramírez, magnífico reitor da UFMG. Obrigada pela distinção do convite que me foi enviado para as comemorações dos 90 anos da UFMG.

Meu coração ainda pulsa de alegria quando percebe as mutações pelas quais a nossa UFMG vem passando, acrescentando cada uma delas à soma do que já foi realizado desde a sua fundação.

Pude tomar parte em muitas das ações, como professora do ICB – Departamento de Parasitologia. Pude, de alguma forma, colaborar para o engrandecimento da grande instituição de ensino e pesquisa que a UFMG veio a se tornar.

Embora já tenha cumprido meu tempo de serviço, ainda continuo no ICB e me recordo das batalhas vencidas pela UFMG, que hoje é grande, respeitada e forma pessoal qualificado para a demanda constante de inovação e tecnologia no mundo atual.

Parabéns a toda equipe.

Maria Norma de Melo é professora emérita do Departamento de Parasitologia do ICB/UFMG. Ela entrou na universidade em 1965, como estudante do curso de Farmácia e Bioquímica da UFMG. 

Clélio Campolina
CLELIO CAMPOLINA DINIZ

As universidades são as instituições âncoras no processo de desenvolvimento econômico, social e humano. Elas são os espaços da produção e transmissão do conhecimento, da convivência, da liberdade, do debate e da crítica. Cada época histórica apresenta seus desafios, desejos e utopias. Vivemos, contemporaneamente, uma crise de paradigmas de organização social e política. Embora a ideologia de uma sociedade mais igualitária esteja viva, o socialismo formal fracassou como projeto e prática. Por sua vez, o capitalismo, agora mais universalizado e globalizado, em sua competição permanente, amplia as desigualdades, aumenta a miséria, promove guerras e conflitos e põe em risco o futuro da humanidade, e o testemunho mais dramático disso são as tragédias das migrações atuais.

Nesse contexto, amplia-se o papel da universidade na busca de ampliação do conhecimento, do avanço da ciência e da tecnologia. Se a educação, a ciência e a tecnologia são os maiores instrumentos para o desenvolvimento e emancipação dos povos, há que se advertir, no entanto, sobre o risco do gnosticismo científico e da corrida tecnológica. Educação, ciência e tecnologia precisam estar a serviço da emancipação humana por meio da busca de novos padrões de organização social e política capazes de combinar crescimento econômico com justiça social, sustentabilidade ambiental, paz e harmonia, e não como instrumentos de dominação e submissão.

Apesar de relativamente jovem, a UFMG atingiu níveis de excelência e destaque no cenário universitário brasileiro e internacional. Essa condição amplia suas responsabilidades diante dos desafios estruturais e conjunturais enfrentados pelo país, especialmente como base para a formação de professores para todos os níveis educacionais, a formação profissional e ética em todas as áreas do conhecimento, da pós-graduação, da pesquisa.

Sinto grande prazer e orgulho de pertencer ao quadro da UFMG há mais de 40 anos. Nela ingressei como professor colaborador e ascendi, por concurso, a todos os níveis da hierarquia, chegando à posição de professor titular em 1991. Exerci a direção do Cedeplar, por dois mandatos alternados, a chefia do Departamento de Ciências Econômicas, a Diretoria da Faculdade de Ciências Econômicas, por dois mandatos, e o Reitorado. Aposentei-me pelo limite legal de idade, mas recebi o título de Professor Emérito, o que me permite dar continuidade às minhas atividades acadêmicas de ensino e pesquisa e desfrutar do rico ambiente de convivência humana, do debate e da crítica.

Clelio Campolina foi reitor da UFMG na gestão 2010 – 2014

Ronaldo Tadeu
RONALDO TADÊU PENA

A instituição universitária brasileira é muito recente. Enquanto a primeira universidade sul-americana nasce no Peru em 1551, a Universidade do Brasil, atual UFRJ, veio à luz só em 1925. A então UMG, hoje a nossa UFMG, veio logo a seguir, em 1927. A partir dos anos 1950, instituições como Capes, CNPq, BNDES e Finep, além das FAPs, cumpriram seu papel fundamental de apoio ao ensino, à pesquisa e à extensão universitária, de forma a levar o sistema universitário aos patamares de hoje. A UFMG é parte fundamental dessa história, por isso temos que celebrar seus 90 anos de vida.

A nossa Universidade tem notável organicidade, e isso, acredito, é o que a mantém há muitos anos no primeiro nível das universidades brasileiras. Divergências existem, afinal, já pelo nome, a instituição universitária abriga todas as linhas de pensamento, todas as ideologias. Entretanto, aqui, o compromisso institucional é o que prevalece, o que é muito saudável para o desenvolvimento da Universidade. É assim que a UFMG vai cumprindo seu múltiplo papel de guardiã da cultura, cidadela das liberdades e da Democracia e vanguardista do desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação.

Pelas oportunidades que tive, devo à UFMG tudo o que consegui em minha vida profissional. Aqui cheguei menino, em 1965, quando fiz parte da primeira turma do Colégio Universitário, fantástica experiência de ensino-aprendizagem. Ali conheci mestres de referência para a vida toda, como Beatriz Alvarenga, Ítalo Mudado, Marcos Mares Guia e José Tavares de Barros. Após a graduação em engenharia elétrica e o mestrado na Coppe-UFRJ, retornei como professor assistente do departamento de engenharia eletrônica, em 1973. Em 1991, tornei-me professor titular de automação e controle, por concurso de provas e títulos. Aposentei-me em 2010. Ao lado da carreira acadêmica estrito senso, exerci cargos de chefe de departamento, coordenador de curso de graduação, diretor da Escola de Engenharia, pró-reitor de Planejamento e reitor.

Ao longo desses 37 anos de trabalho na UFMG, tive a felicidade de ver o notável desenvolvimento de nossa Universidade em todas as áreas do conhecimento. O inegável sucesso da UFMG é o resultado do trabalho sério de professores, funcionários e alunos.

No meu período à frente da Reitoria, pude contar com um Conselho Universitário cioso de seu poder e de seu dever institucional. Muitos bons resultados foram colhidos, mas eu destaco a conclusão do Projeto Campus 2000, desenvolvido também pelos reitores César Sá Barreto e Ana Lúcia Gazzolla. Destaco o Hospital Risoleta Neves, a participação no Reuni e na UAB e a municipalização da creche, feita apesar de forte oposição de alguns setores. Finalmente, não posso deixar de relatar a emoção de, por meio do Projeto Sentimentos do Mundo, criado pela vice-reitora Heloisa Starling, ter trazido à fruição da Universidade, no gramado da Reitoria, expoentes das artes como os grupos Corpo, Galpão, Uakti, Giramundo, a Filarmônica de Minas Gerais e, no auditório, a grande Maria Betânia, Arnaldo Antunes, os cineastas David Lynch e Manoel de Oliveira, entre outros.

Ronaldo Tadêu Pena foi reitor da UFMG na gestão 2006 – 2010

Ana-Lúcia
ANA LÚCIA GAZZOLLA

Querida UFMG,

Escrevo-lhe hoje esta carta para cumprimentá-la pelo nonagésimo aniversário. Você é somente 24 anos mais velha que eu, e, de uma forma ou de outra, sempre foi parte de minha vida. Em sua Faculdade de Direito estudou meu pai Astolpho, filho de um imigrante italiano que foi colono nas fazendas de café do Sul de Minas. Ele, primeira pessoa de nossa família a fazer um curso superior, foi quem primeiro me contou sobre você, e os casos de seu tempo de estudante foram criando um primeiro elo com a Universidade que mais tarde seria minha. Acho que, por causa dele, sempre sonhei em estudar aqui. Menina de 14 anos, ao terminar o ginásio em Três Corações, já sabia o que queria: e vim fazer o curso clássico no Colégio  de Aplicação, depois o terceiro ano no Colégio Universitário, e a Faculdade de Letras logo após.

Você já se tornara parte de mim e foi generosa comigo. Além de me formar, de me proporcionar o exemplo de tantos mestres, acolheu-me como professora, permitiu-me estudar e trabalhar no que eu gostava, abriu-me o caminho da administração superior e concedeu-me a maior honra, a de ser sua reitora de 2002 a 2006. Sou grata pelos alunos e alunas que tive, pelos colegas com quem convivi e por fazer parte, como todos os docentes, servidores técnico-administrativos e discentes, desses 90 anos de sua bela história.

Pois você, UFMG, destaca-se em tudo: formou e forma gerações de alunos que tiveram grande atuação em todos os campos, das artes às humanidades, da ciência à tecnologia; produz pesquisas de grande impacto, participando de redes nacionais e internacionais; e sua ação extensionista é reconhecidamente transformadora. Sua atuação na área da saúde também tem de ser permanentemente lembrada.

Universidade situada, enraizada no aqui e agora de nossa terra e nosso tempo, você sempre se posicionou com os valores corretos, do lado da justiça e da democracia. É um patrimônio do estado e do país, e mantém, ao mesmo tempo, sua sintonia com o futuro e as referências universais. Mas é e será sempre nossa, cada vez mais madura e experiente, já quase centenária, orgulhosamente mineira, altivamente brasileira, mas sempre aberta ao mundo, relevante, inclusiva, atenta à diversidade, buscando a excelência e compromissada com o que de melhor o engenho e a arte humanos são capazes de produzir. Feliz aniversário, UFMG! E, com sua permanente capacidade de renovação, que venham os novos tempos. Muito obrigada por tudo.

Ana Lúcia Almeida Gazzola foi reitora da UFMG na gestão 2002 – 2006

Francisco-Cesar
FRANCISCO CÉSAR DE SÁ BARRETO

Comecei a trabalhar em tempo integral aos 15 anos de idade. A partir daí, até 2002, minha vida esteve sempre ligada à UFMG. Em 1961, inscrevi-me no vestibular do curso de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que ocupava dois andares do Edifício Acaiaca. O vestibular foi realizado no ano de 1962, na nova sede, Rua Carangola. O nosso curso era muito pobre em instalações, infraestrutura e biblioteca. Não se oferecia ainda a pós-graduação. Eram poucos professores, mas todos muito dedicados. Hoje, o curso é uma referência nacional.

O mestrado em física, o primeiro da UFMG, surge em 1966, com as mesmas condições da graduação. No entanto, desde a primeira avaliação da Capes até hoje, o curso tem conceito A ou 7, o que se aplica também em outras áreas.

Entrei na Universidade em 1962, graduei-me em 1965, iniciei o mestrado em 1966 e, após retorno do exterior, em 1971, dei início à minha vida acadêmica plena na UFMG. Professor de ciclo básico, de graduação e de pós-graduação, pesquisador e orientador de teses. Coordenador de cursos de graduação e pós-graduação, chefe de departamento, membro dos conselhos de Pós-graduação e de Pesquisa, pró-reitor de Pesquisa e reitor.

Portanto, tive o privilégio e a honra de trilhar todos os caminhos acadêmicos na nossa UFMG. São muitas as qualidades e conquistas da Universidade. Creio que o maior valor da nossa Universidade é procurar, encontrar, aceitar e enfrentar desafios com a marca da qualidade acadêmica e sempre num ambiente de diálogo e democracia. Isso não é pouco! O principal valor não está nas conquistas, mas na procura de novas conquistas. Em meu discurso de despedida como reitor, afirmei que estava saindo da UFMG, mas que a UFMG não sairia de mim. Nada mais verdadeiro…

Francisco César de Sá Barreto foi reitor da UFMG na gestão 1998 – 2002

José-Henrique
JOSÉ HENRIQUE SANTOS

A propósito das comemorações dos 90 anos da UFMG, gostaria de destacar a obstinada defesa das liberdades exercida pela Universidade durante todo o período do regime militar. Não só durante minha gestão, como também nas dos reitores que me antecederam, nunca aceitamos que fosse instalado na Reitoria o “gabinete de segurança” comandado por oficial do exército, que decidia sobre fatos acadêmicos tidos como subversivos e perigosos. Entre 1982 e 1986, pude acompanhar o que acontecia nas outras universidades federais. Creio que a UFMG foi a única que não compactuou com essa exigência, de modo que a política universitária nunca foi decidida fora da Instituição. Lembro-me de que ministrei um curso intensivo de uma semana em Universidade de outro Estado, e, apresentando-me ao Reitor, pediu-me ele, no fim da entrevista, para minha surpresa, que submetesse o programa de meu curso ao supervisor de segurança, visto que o seu conteúdo tinha um componente político “que poderia ser mal interpretado”.

Essa independência custou-nos muitas ameaças, e várias vezes fui chamado ao MEC para esclarecer atitudes e decisões consideradas “de oposição ao governo”. Em uma delas foi-me mostrado grande maço de documentos sobre uma de nossas faculdades, com acusações a professores que não estariam cumprindo horário, tendo a chefe de Gabinete da ministra ameaçado publicá-lo, caso eu continuasse a divergir do Ministério. Respondi-lhe que me desse ciência dos fatos para que pudéssemos apurar, e ela respondeu-me que não podia, pois eram documentos sigilosos. O assunto morreu por aí. Esse é apenas um pequeno exemplo de como procediam: se o reitor ficasse com medo, estava perdido!

Em 1985 (ou 84?), tentaram cassar meu mandato, mas a resistência do corpo docente e discente da UFMG (e também do corpo de funcionários) muito ajudou. Também a Assembleia Legislativa e a Câmara Municipal fizeram sessões em defesa da Universidade, assim como a SBPC, que realizava sua reunião anual em nossas dependências.

A última ameaça de intervenção ocorreu quando acolhi no campus Saúde os estudantes que fugiram da polícia, impedidos de realizar sua reunião num clube esportivo de Belo Horizonte. O general exigiu que eu chamasse o exército para “manter a ordem e proteger os bens públicos ameaçados”. Recusei-me, dizendo que eu mesmo assumiria essa responsabilidade como dever do cargo. Ele se exaltou e disse que invadiria o campus para prender todos os estudantes. Respondi-lhe que me encontrariam no portão de entrada e teriam de prender-me na frente de toda a imprensa, que seria chamada, e dos inúmeros deputados e demais autoridades que me davam apoio. Disse-me, então, já irritadíssimo: o senhor será responsável por tudo o que acontecer!

Telefonei depois ao Ministro Ludwig e narrei-lhe a conversa. Nenhum reitor, argumentei, pode chamar a polícia para invadir a universidade e prender os estudantes, que estão “na casa que foi feita para eles”; perderia toda a autoridade e, pior ainda, praticaria um ato indigno contra seus alunos! Ele concordou comigo e disse que telefonaria ao general. Assim o fez, porque este logo depois ligou-me, mais calmo, mas repetindo a ameaça: o senhor será responsável por tudo! Respondi apenas: como sempre fui. Cuido da minha Universidade, do mesmo modo que o senhor cuida de sua tropa.

No final da semana, no sábado, cumpriu-se o último ato: vários estudantes tiveram sintomas de envenenamento, depois de comerem no refeitório. Foram atendidos no HC, e o almoço foi imediatamente cancelado.

Apuramos o fato e descobrimos que um produto tóxico fora misturado ao feijão por uma das funcionárias, que era agente do Dops. Foi ela demitida, e nosso inquérito, remetido à Polícia Federal, com pedido de investigação, como manda a lei. Nunca recebemos resposta. Uns 10 anos depois, um médico que atuara na repressão, numa inesperada conversa com uma de nossas funcionárias, que era sua cliente, confirmou o atentado, apresentando como justificativa a necessidade de reprimir os subversivos.

José Henrique Santos foi reitor da UFMG na gestão 1982 – 1986

Tomaz-Aroldo
TOMÁS AROLDO DA MOTA SANTOS

A UFMG foi porta aberta para minha vida intelectual, profissional, social e política.

Na UFMG iniciei e concluí meus estudos; primeiro na Face, nos anos 60, onde comecei e interrompi o curso de Sociologia e Política; em seguida, na Faculdade de Farmácia, onde me graduei; depois, no ICB, onde me doutorei em Bioquímica e Imunologia.

Na UFMG compartilhei projetos, desafios, pressões, paixões, ousadias, tensões e alegrias com muitas pessoas, companheiras no ensino, na pesquisa, na política e no desenvolvimento institucional. Nesses ambientes e circunstâncias fiz muitas amizades.

Sou muito grato a todos que me ensinaram quando fui estudante, professor, militante, dirigente. Guardo a melhor lembrança de meus estudantes, dos companheiros de trabalho, docentes e servidores técnico-administrativos, que me distinguiram com sua lealdade e amizade.

Pelos milhares de profissionais, mestres e doutores formados; pelo que fez nos campos das ciências, da educação, da técnica, das artes, da filosofia, da tecnologia, da inovação; pelos serviços prestados; pela socialização do conhecimento; pelo que representa para a ação do Estado; pelo que fez e faz para o desenvolvimento econômico e social de Minas e do Brasil; por tudo isso, a UFMG alcançou o status de instituição indispensável.

Fizeram a UFMG gerações e gerações. A todas, meu reconhecimento, em especial aos que, nos dias de hoje, mantêm a Universidade livre, criativa, tolerante e compromissada com o povo e a democracia brasileira.

Longa vida à UFMG.

Tomaz Aroldo da Mota Santos foi reitor da UFMG na gestão 1994 – 1998