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Nº 1358 - Ano 28 - 18.07.2002

 

 

Carlos Diniz, o iluminado

Maria Elena de Lima Perez Garcia*

aquele 3 de fevereiro de 1919, a pequena cidade de Luminárias, no Sul de Minas Gerais, na sua então discreta existência, moldou, em suas entranhas, com a rara argila dos sábios, o menino Carlos Diniz. Muita luz deu ao menino; parecia que a cidadezinha tinha em seu nome alguma predestinação. Seu caráter discreto, questionador e, sobretudo, pensador delineava o homem de Ciência que seria revelado pouco depois. Em 1943, formou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina da UFMG, integrando o seleto grupo de discípulos do professor Baeta Viana. Na época, relembrava o professor Diniz, florescia, no laboratório de Baeta Viana, o aprendizado da metodologia e da pesquisa científicas, deixando espaço ainda para os encontros musicais do grupo.

Em 1948, o professor Diniz obteve o título de livre docente pela UFMG. De 1944 a 1948, foi professor assistente de Química Fisiológica no ICB. No ano seguinte, mudou-se para São Paulo, onde foi pesquisador no Instituto Biológico (até 1952), professor de Biofísica na Universidade Federal de São Paulo (até 1953) e professor titular na USP de Ribeirão Preto (1953 a 1982). No biênio 1956-1957, estagiou na Universidade de Wisconsin, Madison, nos Estados Unidos, consolidando sua experiência científica.

O professor Diniz era profético e ensinava-nos a crescer, contando "parábolas", quase todas formuladas a partir de exemplos de vida. Tinha também uma "doce pontinha de pimenta", sorria maroto e emendava uma história picante, mas nunca degradante, de um de seus amigos queridos. Adorava contar casos de Maurício Rocha e Silva, um de seus mestres, habilidoso e genioso. A descoberta da bradicinina, substância vasodilatadora, juntamente com Wilson Teixeira Beraldo, Gastão Rosenfeld e o próprio Rocha e Silva, foi um dos marcos de sua carreira científica.

As peçonhas de escorpiões, serpentes e aranhas o encantaram desde cedo. O professor Diniz iniciou seus estudos com elas ainda na década de 50 e até hoje causam impacto na sociedade científica internacional. Coincidência ou não, ele nasceu perto de Campanha, terra de Vital Brazil. Diniz, nosso cientista profético, parece ter percebido a importância destas peçonhas quando ainda eram vistas como "substâncias exóticas" e de pouco interesse para a comunidade científica internacional.

Em 1981, retornou a Minas como professor no Departamento de Bioquímica e Imunologia do ICB, aposentando-se compulsoriamente 10 anos depois. Homem dinâmico, não conseguiu disfarçar a decepção, mas sua força vertiginosa o levou a constituir um grupo de pesquisa de alta competência na Fundação Ezequiel Dias (Funed), onde assistimos a um grande progresso no isolamento e caracterização de novas toxinas de aranhas, escorpiões e serpentes.

O professor Diniz era estrategista, inteligente, surpreendente e dono de idéias originais. Publicou cerca de 133 trabalhos completos e construiu uma produção bibliográfica de quase 300 obras. Ele empenhou-se para renovar o ensino básico no ICB e foi um dos fundadores do departamento de Bioquímica e Imunologia e do curso de pós-graduação nesta mesma área. Lutou incansavelmente para criar e estruturar a Fapemig. Junto com o professor Marcos Mares Guia, foi um dos gestores da Biobrás, nascida no seio da UFMG. Se Minas é hoje um pólo tecnológico no Brasil, deve muito à criatividade e à fé do professor Diniz . Mas seu trabalho não se restringia a Minas Gerais. Também atuava em Brasília, onde participava dos comitês da Capes e do CNPq, e ajudou a definir políticas para a ciência e tecnologia brasileiras.

Era dono de um caráter imparcial, que, às vezes, sugeria distanciamento ou frieza. Com o tempo, aprendemos os meandros da retidão e da ética aí implicados. Sua maestria nata e discreta era freqüentemente mascarada por frases interminadas e palavras que ficavam no ar. Seu pensamento parecia viajar numa dimensão muito superior à das palavras. Ele nunca dava uma resposta pronta: o interlocutor deveria construí-la, elaborá-la.

Histórias graciosas e pitorescas também marcaram sua trajetória. Gostava de contar casos que pontuavam sua íntima relação com os animais peçonhentos: houve uma época em que, para manter suas pesquisas, adquiria escorpiões do Sr. Felisberto, que vivia em Santa Bárbara,onde coletava os bichos. As caixas com os "terríveis" artrópodos eram mantidas no jardim de sua casa até que ele as trouxesse em seu carro para o criadouro no campus da Pampulha. Um dia, Dona Mariinha, sua esposa, com serenidade e paciência incomuns, quase foi à loucura. Ela flagrou escorpiões passeando pela banheira, alojando-se nas gavetas e desfilando curiosos pelo tapete da sala. A incrível dedicação do mestre Diniz parece ter sido compreendida pelos bichos, que se sentiram em casa.

Esta "argila iluminada" foi única. Talvez por ter sido moldada na mesma região de onde vieram Beraldo e Vital Brazil. Para o professor Diniz, aquela região do Sul de Minas exercia certa magia. Quando ajudou a fundar a Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular, em 1971, incentivou que seus membros se reunissem anualmente em Caxambu, o que ocorre até hoje, 31 edições depois. Também era membro da Academia Brasileira de Ciências. Apreciava nossos escritores, a literatura erudita, a boa música, o bom vinho. Ultimamente, lia grandes autores que questionavam o curto tempo que ameaça a velhice. O tempo parecia curto demais para seus projetos...

Parece que o Sul de Minas quis chamá-lo de volta às suas entranhas. Uma queda nas escadarias de uma igreja de Lavras rendeu-lhe um edema cerebral, que ocasionou um longo tratamento, muita dedicação da família e uma árdua luta pessoal. Seu cérebro, tão iluminado, foi adormecendo devagarinho...

Luminárias, Luminárias, seu filho agora repousa em Belo Horizonte; estas montanhas espelham sua luz, por aqui e muito além! Imagino seu sorriso mirando-nos à espera de uma resposta a mais para este desafio. Será mais uma de suas "parábolas"? O privilégio de sua convivência fica para sempre.

* Professora adjunta do departamento de Bioquímica e Imunologia do ICB. Foi orientada em seu mestrado pelo professor Carlos Ribeiro Diniz

(Leia mais sobre o professor Carlos Diniz na página 5)