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Nº 1411 - Ano 29 - 09.10.2003

 

 

Não adianta chorar sobre o leite derramado*

Milton Mendonça Júnior**

e, no plano da economia, a austeridade impera, e, nas relações internacionais, o Brasil impõe-se mais do que no governo do `estadista' FHC, em certos setores o governo do presidente Lula beira o vergonhoso.

Abdicar da posição histórica de seu próprio partido em relação às questões ambientais soa como traição. Pior ainda: quando se manifestou por uma posição não ideológica, científica, exercendo a cautela, enganou a todos, tomando, por fim, esta decisão econômica, ditada por pressões políticas.

Mesmo com a posição louvável e clara do Ministério do Meio Ambiente, contrária à maneira como está sendo liberado o uso e o plantio de transgênicos, o governo curva-se às exigências do lobby agrícola, que prefere pagar royalties ao exterior e utilizar uma tecnologia de eficácia duvidosa e risco potencial ainda de todo desconhecido. Com o detalhe de que restará a nós, provavelmente, ingerir este problema todo, literalmente falando!

Uma vez que a atitude, errônea que seja, foi tomada à revelia do princípio de cautela, e não através dele, às favas a cautela: devemos nos esforçar para aprofundar as bases científicas do conhecimento sobre Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) e demonstrar se nossas hipóteses de risco ambiental são válidas ou não.

O esforço de pesquisa sobre as influências dos OGMs não faz jus à extensão das terras plantadas com OGMs no mundo. Se há risco, como imaginamos ser plausível, temos que detectá-lo e identificá-lo tão rápido quanto possível.

Se o governo federal pretende autorizar o plantio da soja transgênica, que o faça com a responsabilidade de fiscalizar pesadamente o processo. Isto significaria:

1) fiscais do Ibama em campo mapeando e averiguando as áreas plantadas com OGMs;

2) acompanhamento dessas áreas plantadas com OGMs ao longo do tempo, de sua reversão para plantio de soja normal e para outras culturas;

3) pesquisa in situ sobre a influência da soja RR da Monsanto e outros organismos geneticamente modificados na biologia do solo, das águas, dos microrganismos, flora e fauna. Esta pesquisa, que deveria ser feita tanto nas próprias áreas de cultivo quanto nas cercanias, precisa dimensionar as alterações do ambiente e da composição genética dos organismos.

 

Uma vez que a atitude, errônea que seja, foi tomada à revelia do princípio de cautela, e não através dele, às favas a cautela: devemos nos esforçar para aprofundar as bases científicas do conhecimento sobre OGMs e demonstrar se nossas hipóteses de risco ambiental são válidas ou não

 

Para isso, é preciso formar uma coalizão governamental de interesses e esforços, através dos ministérios do Meio Ambiente, da Agricultura e da Ciência e Tecnologia, com o auxílio essencial de centros de pesquisa qualificados como a Embrapa, as universidades, além da criação de grupos de pesquisa interinstitucionais, com mão-de-obra, material e instalações condizentes com a escala do trabalho.

Quando se resolve não primar pela cautela, esse é o preço que se paga pela responsabilidade. Assim, por exemplo, o Brasil deveria ratificar o Protocolo de Biossegurança, parte da Convenção da Diversidade Biológica, instituído em Montreal, no Canadá, em 2000, e captar verbas internacionais a fundo perdido para essas pesquisas sobre os transgênicos.

Investir pesadamente na compreensão da influência dos OGMs no ambiente natural, seja ele mais ou menos modificado pelo homem, é a única forma de tirarmos a prova: afinal, há risco para a saúde humana e ambiental?

Enquanto não temos respostas definitivas (como é praxe em ciência, provavelmente teremos `apenas' hipóteses mais bem fundamentadas), precisamos de organização e manifestação - só teremos força para sermos ouvidos se formos unidos e representativos, condições que acreditamos reunir, não apenas porque a Ciência é uma instituição sem fronteiras, mas porque nós, cientistas, ajudamos a formar a opinião do povo brasileiro, a quem os governantes representam.

Gostaria de conclamar a SBPC e a Academia Brasileira de Ciências a liderar tal movimento. Além disso, para nós, cientistas ou não, há uma série de ONGs ambientais que deveriam participar desta manifestação (como a WWF). Algumas já surgiram com iniciativas que demonstram que há, na sociedade, posições contrárias aos transgênicos, como o Greenpeace, do qual não sou membro nem apoiador incondicional, mas que entendo estar agora, pelo menos, do mesmo lado da cerca que nós; cerca esta que o governo, com esta decisão histórica, mas infeliz, posicionou entre `nós' e `eles' mesmos.

*Artigo publicado no JC e-mail, de 26 de setembro de 2003
**Pesquisador do departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul