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Nº 1417 - Ano 29 - 20.11.2003


Laços de família

Dissertação investiga a influência das relações familiares na obra de Drummond

Maurício Guilherme Silva Júnior

 

iante do frágil itabirano, o anjo torto não pensou duas vezes e logo ditou a sina do poeta: "Vai, Carlos! Ser gauche na vida." O verso do Poema de sete faces resume com propriedade o "semblante" denso e soturno com que a obra e o perfil de Carlos Drummond de Andrade seriam futuramente identificados por milhares de leitores. Apesar da forte tensão existencial de sua poesia, o escritor mineiro apresentava características - literárias e pessoais - bastante distintas da figura idealizada pelo imaginário popular. O sibilino e reservado homem de letras foi também filho, amigo e irmão de grande afeto e solidariedade.

Para identificar a maneira como as relações familiares de Drummond aparecem em sua poesia, a professora Leda Maria Lage Carvalho dedicou-se a um detalhado estudo de 35 livros do escritor itabirano. O esforço culminou com a dissertação de mestrado da pesquisadora, defendida junto ao curso de pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras (Fale). Residente em Itabira, Leda sempre observou que as pessoas, mesmo em sua cidade, cultivavam noções limitadas sobre o poeta. "Por conhecerem apenas os poemas mais populares, enxergavam-no como melancólico e pessimista", afirma.

Tal leitura impede que as pessoas reconheçam em Drummond o cidadão bem-humorado ou, em sua poesia, a realidade de uma obra de vasta amplitude. Ciente disso, em 1987, Leda Carvalho montou a oficina literária em que apresentava aos participantes a diversidade do escritor, através de poemas ecológicos, cômicos ou eróticos. "Pedia aos alunos para interpretar os versos, e todos se surpreendiam com o que liam. Eles também ficaram curiosos em conhecer a família de Drummond", conta.

O interesse alheio estimulou Leda a investigar a possibilidade de resgatar os laços familiares de Drummond através de seus textos poéticos. Além de se aprofundar na obra, tornou-se amiga de Julieta, sobrinha do poeta, que lhe confiou particularidades do clã.

A mesa

Ao unir dados literários a descrições pessoais, cartas e documentos, ficou mais fácil compreender certas construções poéticas. Poema-guia de todo o trabalho, A mesa, por exemplo, reúne o pai, a mãe e os 13 irmãos do poeta itabirano, oito dos quais faleceram ainda recém-nascidos. Publicado pela primeira vez em 1951, no livro Claro Enigma, A mesa é a composição de um jantar imaginário. Nele, a família comemora os 90 anos de nascimento do pai de Drummond, Carlos Elias de Paula Andrade, que, na verdade, faleceu aos 70. Já os oito irmãos mortos precocemente aparecem na forma de anjos.

Há referência, ainda, a Sá Maria, ex-escrava que trabalhou para a família durante 50 anos. Poucos sabem, mas ela foi uma das pessoas mais importantes na formação do poeta. Quando criança, Drummond não gostava de brincadeiras violentas. Preferia ler - livros e nuvens - e observar a natureza. "Sá Maria, muito carinhosa, preservava a sensibilidade de Drummond. Muitas vezes, como na morte de um dos irmãos, dava respostas existenciais ao menino", explica Leda Carvalho.

O poema A mesa traz referências importantes para a análise da obra de Drummond. Ao mesmo tempo em que trata afetuosamente a figura dos parentes, o poeta descreve uma família universal. "Ele fala de seus irmãos e pais com muito afeto e solidariedade, mas isso sempre se estende à humanidade", diz. A pesquisa de Leda Carvalho, além de desmitificar a imagem de um Drummond melancólico e difícil, revela um de seus ideais. Para ele, os poetas deveriam abandonar o conceito de poesia como evasão e aceitar, "alegremente", a idéia de que ela, na verdade, é participação.

 
Entre as curiosidades desvendadas pela pesquisa, Leda Carvalho ressalta o nome do poeta na certidão de nascimento. O escritor foi batizado apenas como Carlos Andrade. Ela até hoje não sabe de onde veio o "Drummond".