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Nº 1431 - Ano 30- 25.3.2004

 

O golpe que feriu o Brasil


Universidade organiza seminário e relembra trajetória de resistência ao movimento de 64, que deu início a uma ditadura de 20 anos

Maurício Guilherme Sival Júnior

o próximo dia 31 de março - há quem diga tratar-se de um triste 1o de abril -, completam-se quatro décadas do golpe militar de 1964, marco inicial de um dos mais terríveis períodos históricos brasileiros. Um dos palcos da resistência ao autoritarismo dos anos de chumbo, a UFMG sediará um seminário para rediscutir o passado. Autoritarismo e Democracia nas Margens da República: 1964, 1984 é o tema do evento que pesquisadores da Universidade promovem, nos dias 31 de março e 1o de abril, na Fafich.

Marcado pela abordagem interdisciplinar, o seminário reunirá convidados de diversas instituições do país - historiadores, cientistas políticos, sociólogos, pesquisadores do cinema, especialistas em música, entre outros profissionais. O evento buscará abordagem ampla, que ultrapasse a compreensão tradicional da política. "Queremos discutir um período mais dilatado que o do golpe propriamente dito, passando pelo regime militar e chegando à redemocratização", diz o professor Rodrigo Patto Sá Motta, que coordena o seminário ao lado da professora Heloísa Murgel Starling. O evento é um desdobramento do Projeto República: Núcleo de Pesquisa, Documentação e Memória, que conta com apoio e financiamento do CNPq e da Fapemig.

Nas matérias que se seguem, o BOLETIM resgata histórias que marcaram a resistência da Universidade ao golpe _ passagens que mesclam confrontos dramáticos e casos que hoje soam como pitorescos.



Já no dia de instauração do golpe foi necessário que o então reitor Aluísio Pimenta (veja boxe) saísse em busca do paradeiro de estudantes detidos pelos militares como subversivos. Segundo o relato do professor em seu livro Universidade: a destruição de uma experiência democrática, não fosse a movimentação de tropas pelas ruas de Belo Horizonte, a realidade do ataque reacionário ter-lhe-ia passado em brancas nuvens. "Era para mim, e penso que para a imensa maioria dos brasileiros que trabalhavam ordeiramente, um dia como qualquer outro. Fomos, então, literalmente tomados de surpresa por um movimento que logo se fantasiou de Revolução", escreveu Aluísio Pimenta.

A partir de 1964, direta ou indiretamente, o autoritarismo atinge toda a comunidade universitária. A meta de monitorar a subversão e dar fim ao comunismo faz com que os militares se infiltrem nos quatro cantos da Instituição - da Reitoria ao universo estudantil. O professor Délcio Vieira Salomon, diretor da Fafich de 1977 a 1981, lembra, por exemplo, a presença de inúmeros "espiões", espalhados entre os alunos. Certa vez, em sua gestão, ocorrera um roubo de equipamentos do departamento de Comunicação Social. Para registrar queixa do acontecido, o professor dirigiu-se à Polícia Federal, onde foi obrigado a esperar por alguns minutos. Para sua surpresa, viu entrarem na delegacia, tranqüilamente, três "alunos" da UFMG, sandálias havaianas nos pés e roupas típicas do movimento hippie. "Na verdade, eram espiões da PF que se passavam por alunos. Ao retornar à Faculdade, alertei os estudantes sobre o que presenciara. Os três suspeitos nunca mais foram vistos na Fafich", conta.

Em diversos momentos, o clima instaurado pelos militares foi respondido pelo que se pode chamar de "resistência branca" da administração central. Para driblar o autoritarismo, muitos dos reitores e diretores de unidades acadêmicas da UFMG protelaram a entrega de relatórios sobre as atividades da comunidade universitária. "Os dirigentes da UFMG faziam o que podiam para proteger as pessoas", ressalta o professor Rodrigo Patto, coordenador do grupo de estudos (veja boxe abaixo), ligado ao Projeto República, atualmente envolvido na organização e na análise dos acervos documentais do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (Dops/MG) e da Assessoria Especial de Segurança e Informações (Aesi), que funcionou na própria UFMG.

Ocupação

Duas invasões, ambas em 1968, foram pontos altos da resistência da Universidade. Uma delas foi a tomada da antiga Fafich, no bairro Santo Antônio, por policiais militares. Eles procuravam um possível suspeito de participação na luta armada. Inconformados com o autoritarismo da PM, alguns estudantes subiram no telhado da Faculdade e começaram a atirar pedras nos invasores. "Não fui eu, que na época tinha a honra de ser o Diretor da Escola, que resisti. Foi a escola, professores, alunos e funcionários", relembrou o professor Pedro Parafita de Bessa, ex-diretor da Fafich, em aula inaugural sobre a história da UFMG, proferida em 1990.

Em entrevista ao BOLETIM em 1999, Parafita, que faleceu em 2002, lembrou detalhes da invasão da Fafich. Chamado à Secretaria de Segurança, o professor foi impedido de presenciar o início do cerco policial. "Quando cheguei (à Fafich), a Escola estava cercada. Decidi retornar à Secretaria e disse ao Secretário que a sua atitude tinha sido indecente, me tirar do prédio para cercá-lo. O Secretário disse que a polícia não tinha medo de mim, por isso não tinha motivos para me tirar de lá", contou.

O outro episódio de confronto entre policiais e estudantes remonta à invasão da Faculdade de Medicina. No caso, a PM buscava dar fim à série de manifestações estudantis realizadas ao longo da semana. O resultado da "batalha", que iniciou nas ruas e alcançou as salas de aula, foi a prisão de mais de 200 estudantes. Para o professor Apolo Heringer Lisboa, atual coordenador do Projeto Manuelzão, as duas unidades sempre se caracterizaram como principais focos de resistência ao golpe. "Para se ter uma idéia, o Comando de Libertação Nacional (Colina) e a liderança da Ação Popular, que mais tarde deu origem ao PCdoB, surgiram na Faculdade de Medicina", conta o professor.

Tributo a Che

Apolo Lisboa, aliás, protagonizou uma das mais surpreendentes cenas de confronto com os militares. No dia 8 de dezembro de 1967, dois meses após a morte do guerrilheiro Ernesto Che Guevara, o professor colava grau com sua turma de Medicina, no auditório do Minascentro. Durante a cerimônia, o presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFMG à época, Jorge Batista Filho, entregou a Apolo um diploma de honra ao mérito pelos serviços prestados à entidade. Naquele instante, Heringer pegou um microfone e dedicou o prêmio "a um médico, colega nosso, que morreu recentemente nas selvas da Bolívia, defendendo o povo latino-americano da lepra do imperialismo". Ao final da solenidade, o estudante precisou entregar a beca a um amigo e pular a janela do auditório. Quando ganhou as ruas, encontrou alguns amigos, a quem pediu dinheiro, e viajou à noite para o Rio de Janeiro, onde passou dois meses na casa de uma amiga da mãe.