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Nº 1451 - Ano 30 - 26.8.2004

/ Sônia Queiroz


Guardiã da Tabatinga



Sônia Queiroz: revitalização dos dialetos pela arte
Foto: Foca Lisboa

 

eus estudos começaram na década de 80, quando havia, em Bom Despacho, mais de 200 falantes da língua da Tabatinga. Passados mais de 20 anos, a pesquisadora Sônia Queiroz, da Faculdade de Letras, permanece atenta ao resgate da cultura afro-brasileira. Coordenadora do projeto Minas afro-descendente e autora do livro Pé preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga , ela explica, nesta entrevista ao BOLETIM, as raízes das línguas faladas por clãs africanos em Minas Gerais.

Quais as novas frentes de trabalho do projeto Minas afro--descendente?

Recentemente, fui procurada por alunos e retomei o projeto. As novas iniciativas foram abertas no 34 o Festival de Inverno da UFMG , quando o grupo Tambolelê apresentou-se, ao lado de seu Ivo e seu Crispim, do Catopê de Milho Verde. Em 2002, promovemos oficina de criação de espetáculos, o Macuco Kanengue , também apresentado em Diamantina e depois levado a Belo Horizonte. Em 2004, coordenei outra oficina do Festival, que, além de seu Ivo e seu Crispim, reuniu falantes de quimbundo e umbundo, línguas-base do dialeto da Tabatinga. No momento, um estudante do projeto trabalha na compilação do vocabulário de línguas africanas recolhidas em Minas Gerais para a produção de um pequeno dicionário. Surgiu, ainda, a idéia de revitalização das iniciativas através da arte. Por isso, propusemos o evento de rua em Bom Despacho, dentro do espírito da extensão universitária, que busca reforçar os valores positivos da cultura e da língua da Tabatinga.

Comente o papel de resistência exercido pelas línguas africanas no período colonial.

As línguas, no período colonial, serviam para esconder a informação do não-falante, no caso os senhores brancos. Notamos que a língua também possui função ritualística. Ela pode ser utilizada para ocultar uma conversa, por exemplo. Suponhamos que eu e você sejamos falantes, estamos em um bar, chega alguém que é de outra roda e não entende nada do que conversamos. Podemos até mesmo estar comentado algo sobre aquela pessoa, mas ela não compreenderá nada. Isso funciona como uma espécie de afronta. Essa é uma das funções da língua que, hoje, parece estar se perdendo.

A arte seria o caminho para revitalizá-las?

Sim. Também trabalho hoje com a formação de professores indígenas. Tenho percebido muito interesse por parte dos professores das escolas das aldeias em revitalizar a língua por meio da literatura, poesia e música. Diversas tribos já não falam fluentemente suas línguas nativas, que foram substituídas pelo português.

Quais as raízes da língua da Tabatinga?

Ao que me parece, há raízes em várias línguas. Quem comenta isso muito bem é a professora Iêda de Castro, especialista em línguas africanas no Brasil. Sua hipótese é de que os africanos foram misturados na senzala de modo a dificultar a comunicação entre eles. Daí, teria se formado uma língua de contato, um dialeto que misturou vários outros idiomas africanos. O que predomina no Brasil é o grupo Banto. Num primeiro momento, teria havido essa mistura de línguas nas senzalas. Em outra etapa, os negros começaram a trabalhar dentro das casas dos senhores, no serviço doméstico. Passaram, então, a aprender o português. Teria havido, portanto, uma mistura da língua criada nas senzalas com o português. Dentro da teoria da professora Iêda, essa seria a base de nosso dialeto rural, que entrou em contato direto com várias línguas africanas. Pronúncias como "muié", em vez de mulher, teria a ver com a estrutura das línguas africanas Banto, nas quais não há, por exemplo, o encontro de duas consoantes. Assim, flor vira "fulô".

Qual a estrutura da língua da Tabatinga?

A base gramatical vem do português e o vocabulário é de origem africana. Em nossa nova frente de trabalho, que busca promover o contato de africanos angolanos _ falantes de quimbundo e umbundo _ com os nossos últimos falantes e remanescentes de línguas africanas, constatamos que estas línguas realmente têm origem nos dialetos africanos. Estudantes angolanos da UFMG estão identificando essas palavras, a partir do contato com pessoas como seu Ivo e seu Crispim, de Milho Verde, e dona Fiota, de Bom Despacho. O único problema é que essas pessoas estão perdendo o contexto de fala. É o mesmo que aprender uma língua estrangeira e, depois, não exercitá-la mais.