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Nº 1452 - Ano 30 - 2.9.2004

 

 

O ditador estadista que cometeu suicídio

Rodrigo Patto Sá Motta*

 

passagem do dia 24 de agosto traz à memória um dos eventos políticos mais dramáticos de nossa história política, o suicídio de Getúlio Vargas. Como existe um curioso fenômeno com as efemérides, que chamam mais atenção do público quando envolvem números redondos, o cinqüentenário da morte do ex-presidente atraiu o interesse de todas as mídias _ dos 49 anos ninguém se lembrou. Esse acontecimento, associado a outro fato traumático, a renúncia de Jânio Quadros, que ocorreu em outro agosto, de 1961, ajudou a criar a imagem de que este seria um mês aziago para os brasileiros.

Os desdobramentos daquele tiro no coração foram muitos e marcantes. De imediato, detonou-se uma comoção popular de grande intensidade. Para além da tristeza, da perplexidade e do assombro, sentimentos que acometeram multidões, produziu-se também a raiva e a fúria, expressas em quebradeiras e ataques de populares contra alvos identificados como responsáveis pelo suicídio: jornais da oposição e propriedades públicas ou privadas de norte-americanos. Mais uma vez em nossa história, segmentos humildes da população urbana demonstraram sua insatisfação através de explosões de cólera, tão violentas quanto efêmeras.

O resultado mais importante do suicídio foi a virada política que ele propiciou, um efeito que, provavelmente, havia sido previsto por Vargas. O sacrifício do presidente roubou de seus inimigos uma vitória que parecia ao alcance da mão. Depois da onda de acusações contra Vargas e seu círculo palaciano, acusados de corrupção e envolvimento em negociatas, e, principalmente, após o atentado da rua Tonelero, o presidente ficou acuado e isolado, abandonado até por aliados. Sua queda era iminente. Mas o suicídio jogou a opinião pública, ao menos parte dela, contra o grupo que se opunha a Vargas, ao ponto de Carlos Lacerda, seu principal expoente, ter sentido necessidade de esconder-se.

A morte trágica de Vargas foi a pedra final na edificação de um dos maiores mitos políticos do Brasil. A imagem da autoimolação associou-se a outras representações correntes sobre o presidente, que também era visto como "pai dos pobres" e líder nacionalista. Com o suicídio, Vargas encerrou o processo de construção de seu mito com uma imagem poderosa e marcante: o martírio. Como toda representação mítica, o imaginário construído em torno de Vargas não se deu no vazio. Afinal, tratou-se de um dos mais longevos chefes de Estado do Brasil independente: permaneceu, somando os dois governos, 18 anos no poder, marca superada apenas por Pedro II. Aliás, essas duas figuras mereceriam uma comparação, apontando as marcas profundas que ambos imprimiram ao país e à sociedade. No caso de Vargas, sua longa permanência no poder e o retorno triunfal nas eleições de 1950 foram possíveis devido ao caráter construtivo de seu governo.

Na verdade, Vargas foi uma figura bastante complexa, às vezes paradoxal. O mesmo líder que construiu uma legislação de proteção ao trabalho e investiu na modernização do Estado e da economia implantou uma ditadura com tinturas fascistas e montou uma máquina de censura e de repressão que moeu gente e idéias na fase aguda do Estado Novo. O processo de construção de um Estado moderno e o avanço na industrialização da economia poderiam ser resumidos em duas palavras: intervenção e controle. Para expressar suas ações nos campos da política e da cultura, os vocábulos mais apropriados seriam repressão e cooptação.

Ao mesmo passo em que os espaços de livre manifestação eram fechados pela ditadura, cargos e prebendas eram oferecidos na burocracia para os mais talentosos quadros da intelectualidade. Uma lista das realizações mais notáveis do Estado varguista inclui a Companhia Siderúrgica Nacional, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a Petrobrás, a Companhia Vale do Rio Doce, a legislação e a justiça do trabalho, o Ministério da Educação, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (atual BNDES), entre outras.

A era Vargas está tão impregnada em nós, na sociedade, na economia, no Estado, que de vez em quando alguém acha necessário decretar sua morte. Afinal, qual o legado do varguismo? Coincidentemente, o último grande herdeiro de Getúlio _ pelo menos ele reivindicava essa condição _ morreu este ano, Leonel Brizola. Ele e João Goulart foram os principais candidatos à herança política de Vargas, embora ambos tenham promovido uma inflexão à esquerda mais ousada que os caminhos trilhados pelo velho líder. Não parece haver outros herdeiros no cenário, tampouco são atraentes para os jovens de hoje propostas que remontam a meados do século passado. Também parece estar morta _ ao menos gostaríamos que sim _ a faceta autoritária do getulismo, ainda que em sua versão paternalista, mais suave e adocicada. Vargas não devotava confiança nem apreço aos mecanismos políticos democráticos. Preferia dirigir-se diretamente ao "povo" a submeter-se a instituições e partidos. Sem dúvida, essa parte da herança vale esquecer, embora não possamos ter certeza de que não esteja pairando por aí, como projeto a ser recriado.

Existiria algo de bom a retirar do legado varguista? Talvez valesse a pena salvar do naufrágio uma idéia vista como dinossauro em tempos de hegemonia neoliberal: a concepção de que uma máquina estatal moderna e bem-aparelhada pode ser uma poderosa auxiliar na busca do desenvolvimento econômico e social.

*Professor do Departamento de História da Fafich

 

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