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Nº 1486 - Ano 31 - 2.6.2005

 

 

Silêncio interuniversitário*

Guilherme Gomes**

esde 1998, a partir da reunião de um conselho de ministros da Educação em Paris, está em gestação a idéia de constituir um "espaço europeu do ensino superior". Para isso, tem sido promovida a harmonização de critérios, durações, títulos e funções. Mas, junto disso, há o reconhecimento de que a rede que se articula nesse espaço é composta por instituições heterogêneas. De qualquer forma, ainda é clara a centralidade do modelo que fez a fortuna da universidade moderna, aquele que orientou a criação da Universidade de Berlim, em 1810, por Wilhelm von Humboldt.

A universidade na qual a pesquisa constituía-se em centro da vida acadêmica e preservava a formação humanista, dando a ela um novo sentido, foi uma das bases da força intelectual e científica da Alemanha. Foi essa universidade que Durkheim conheceu e admirou em 1885 e foi referência para a reforma da Sorbonne na Terceira República. Foi esse modelo que esteve na origem do projeto da Universidade de São Paulo, na década de 1930.

Esse tipo de universidade é hoje alvo de crítica aguda por parte de quem só enxerga nele altos custos, corporativismo e dificuldade em oferecer respostas rápidas que acompanhem o dinamismo das economias contemporâneas. E a ele são contrapostos dois outros modelos: o das universidades de elite norte-americanas, voltadas para a produção de tecnologias de ponta em áreas específicas; e os cursos superiores, para a formação intensiva de mão-de-obra qualificada para responder a problemas singulares.

Apesar de estar sob forte pressão, a universidade humboldtiana deve sobreviver a esse processo, caso contrário teríamos como que uma espécie de suicídio civilizatório da Europa. O que se depreende dessa experiência é que, onde existe uma sólida rede de grandes universidades tradicionais, a proliferação de instituições baseadas em outros modelos não deve ser temida. O sistema que se redesenha é composto por tipos e unidades concorrentes e complementares.

E é fundamental que, em suas interfaces, haja permeabilidade e trocas constantes. Não se trata apenas da circulação de estudantes em formação, mas também da articulação de grupos de pesquisa e docência em redes interuniversitárias e internacionais. Quanto menos fechada em si mesma, menos a universidade é vulnerável à autocomplacência.

O que chama a atenção no debate sobre a reforma no Brasil é uma espécie de uníssono conservador contra interferências externas no ensino superior. De um lado, as interferências estatais, que se expressam no excesso de normas previstas no projeto. De outro, as interferências da comunidade local ou regional, já que o anteprojeto indica que a universidade deve se submeter a um conselho comunitário social que deverá subsidiar a fixação de suas diretrizes.

A crítica conservadora vê nisso apenas a possibilidade da interferência de movimentos sociais na paz dos negócios acadêmicos. Mas é preciso atentar para outro aspecto dos conselhos comunitários. A universidade já experimentou embates de toda ordem com a Igreja, o Estado, a Cidade, o Capital. A relação com o ambiente em que se instala não pode ser definida de antemão pelo critério da integração, que só pode resultar de processo nunca destituído de conflito. Mas, se a universidade em certos contextos deve resistir a interferências externas, faz parte de sua lógica estar aberta a outras. Quando surgiu, no século 12, não existiam nações, mas a universidade já nasceu internacional, marcada pela forte presença do estudante e do professor estrangeiros.

Os méritos da reforma proposta para a educação superior no Brasil são muitos, mas ela se furtou de pensar algo essencial. No projeto são desenhadas instituições autárquicas, nada se diz da necessidade de se relacionarem. O texto é minucioso ao fincá-las em seu local, mas é omisso no que diz respeito ao espaço interuniversitário e ao caráter internacional que cada vez mais delas se exige.

A palavra universidade é freqüentemente associada ao conjunto variado das ciências. Porém, na sua origem, seu sentido estava ligado à idéia de corporação. No direito romano, "universitas" remetia à idéia de coletividade, definida como "um conjunto ou coleção, em um só corpo, de uma pluralidade de pessoas". "Universitas" podia remeter à humanidade, à igreja, a uma cidade e também à corporação de professores e estudantes reunidos em uma instituição. Se esse sentido não é ordinariamente lembrado, no entanto, ele está impregnado na própria existência da universidade.

Como corporação, ela deve se proteger das ações deletérias de entidades de outro tipo, inclusive do Estado em certas circunstâncias. Mas o que ela menos deve temer é o Estado democrático e republicano, na medida em que educação e produção de conhecimento são-lhe essenciais. Esse tipo de Estado só sobrevive se traz para dentro de si os representantes da universidade para lidarem com o que diz respeito a ela. Mas estas são reflexões sobre a universidade propriamente dita.

Escapam delas as instituições de ensino superior que são propriedade privada de alguém, que submete aos seus ditames professores e estudantes, impedindo que emerjam como corporação. Estas, sem dúvida, não ficam muito à vontade na República. A arena de disputa que se instaurou com o debate da reforma da educação superior é sinal de maturidade. E àqueles que estão na testa do processo deve ser reconhecido o mérito. Até agora, seu propósito foi o interesse público, e sua atuação, orientada para o convencimento e a deliberação democrática.

* Artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 17 de maio

** Professor associado do departamento de Antropologia e chefe de gabinete da Reitoria da PUC-SP

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