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Nº 1512 - Ano 32
08.12.2005

Ana Pizarro

"Devemos lutar pela memória"

ela segunda vez, a UFMG organizou o colóquio internacional A invenção do arquivo literário, que discutiu, em novembro, a importância dos acervos literários na reconstituição da memória de uma cultura. Uma das principais expoentes do colóquio foi a pesquisadora chilena Ana Pizarro, professora da Universidade de Santiago, que abriu o evento abordando o tema América Latina como arquivo literário.

Felipe Zig
Ana Pizarro: arquivos formam identidades

Em sua passagem pela UFMG, Ana Pizarro recebeu a reportagem do BOLETIM para esta entrevista em que analisa o papel do status quo na canonização de autores _ "o poder instala sua própria narrativa" _ e detalha sua pesquisa sobre a identidade cultural da Amazônia no espaço fragmentado da América Latina.

Os arquivos literários são capazes de reunir a memória coletiva, mas também servem aos estudos sobre a criação artística. Até que ponto podem contribuir para a reconstituição histórica?

Os arquivos existem para conduzir a uma interpretação, porque eles são objetos e não falam por si mesmo. O problema é que a interpretação e, até mesmo a difusão, estão relacionadas ao poder, porque há critérios muito conservadores para estabelecer a significação de um texto. É importante também que esse texto esteja à disposição de outros pesquisadores. A crítica tradicional, a mais conservadora, pretendia construir monumentos a partir de documentos, fazer desses monumentos um objeto estático, instalado para a posteridade. Mas os documentos são importantes porque permitem que os novos críticos os revisem para verificar se são mesmo monumentos, se aquilo que canonizou determinado autor é definitivamente um clássico. Estabelecer cânones, ou seja os escritores consagrados, envolve questões de poderio político e econômico ou impostas por um grupo social. Durante as ditaduras latino-americanas, nem todos os autores puderam vir a público. Ou estavam fora do país, ou foram exilados. O poder instala sua própria narrativa.

O advento do computador alterou também os processos da escrita, que não mais produzem arquivos residuais, os rascunhos, já que este pode ser constantemente renovado sem deixar rastros. Que futuro está reservado aos arquivos literários?

A partir do computador, o arquivo passa a ser mais precário. Mas, além disso, a revolução das comunicações faz com que o arquivo se prenda à imagem. Existe agora uma profusão de imagens e não há como controlá-las. E isso é um problema para os arquivos. O que vale a pena guardar para a posteridade?

Em artigo publicado na imprensa brasileira, o psicanalista inglês Adam Phillips condenou o que chama de "obsessão" pela memória na sociedade contemporânea. A senhora concorda com esse diagnóstico?

Creio que há uma forma de pensamento que pertence ao centro e outra que pertence à periferia. Um crítico inglês evidentemente pensa o que interessa à Inglaterra e ao Primeiro Mundo, mas necessitamos construir a memória nesta parte do Terceiro Mundo, onde tudo é precário por uma série de razões _ da política ao clima. Para nós, o esforço arquivístico é uma questão de formação de identidades. Devemos lutar por uma memória. Na América Latina, a memória é um problema muito grave, porque se perde a cada momento. Como já disse, há razões políticas. Na maioria das ditaduras da América do Sul, por exemplo, livros foram destruídos e queimados. O controle da memória é um fenômeno muito complicado em regimes totalitários, que tratam o conhecimento como algo muito perigoso.

Nos últimos anos, a senhora tem desenvolvido o projeto Desenho cultural da área amazônica. De que maneira a região amazônica se articula com a cultura latino-americana?

Esse é um projeto que trata dos discursos que construíram a Amazônia. São discursos diferentes. Há o discurso da conquista, o dos estudos científicos, o de mobilização dos seringueiros, nos anos 60. Tenho a sensação de que na Amazônia estão todos os elementos da cultura latino-americana, só que levados aos extremos. E eles são muito contraditórios. Os mecanismos de construção cultural são extremamente complexos, em um mundo que envolve muita gente diferente e onde coexistem várias culturas. Para se ter uma idéia, há cerca de 700 grupos indígenas, há seringueiros e europeus _ portugueses, espanhóis, franceses, holandeses... Temos também os grandes contrastes; as diferenças entre a pobreza local e a riqueza do capital internacional são brutais. As Nações Unidas denunciaram a existência de 14 mil pessoas vivendo como escravas. A região registra uma série de discursos que manifestam lutas locais: a dos índios contra as hidrelétricas, as reivindicações dos remanescentes de quilombos e outros embates que são muito importantes e que podem se relacionar a outros processos culturais da América Latina.