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Nº 1551 - Ano 32
9.10.2006

Saúde e espiritualidade

Mauro Ivan Salgado*


omo pensar a saúde e a espiritualidade juntas no mundo atual? A Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu, em 22 de janeiro de 1998, que “saúde é um estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social, e não meramente a ausência de doença ou enfermidade.” O conceito de saúde, posto nessa ampla dimensão, obrigou as universidades do mundo inteiro a se mobilizarem rapidamente para acrescentar a espiritualidade em seus currículos de saúde. E ficou óbvio, quando tudo indicava que a espiritualidade ficaria cada vez mais distanciada da ciência, que a própria ciência, – a física quântica, na visão de Fritjot Kapra ao tratar de saúde –, sentiu-se obrigada a fazer referência à espiritualidade.

Falar de saúde não causa estranheza porque é uma atitude que implica responsabilizar os governos pela sua vigilância e manutenção. Entretanto, a espiritualidade causa perplexidade e polêmica. E a controvérsia é ainda maior quando associamos os dois conceitos.

Como compreender, então, a espiritualidade? O mundo ocidental tem uma tradição cultural que separa o espírito da matéria e divide o ser humano em corpo e alma. Uma pesquisa histórica mostra que a categoria espírito está presente em todas as tradições culturais, espirituais e filosóficas através da respiração, do sopro primordial. A palavra espírito é Ruah, do hebraico, Pneuma, do grego, e Spiritus, do latim, como fonte original onde todos bebem.

O espírito, em todas as línguas, é o princípio criador, feminino, materno, que paira sobre o caos primitivo, que choca o ovo sagrado originário da vida em múltiplas culturas. Entende-se espírito como fonte da vida que nos remete ao espírito de Deus, aquela energia primordial de onde tudo procede, na teologia cristã, o Spiritus Creator. Por isso, há necessidade de compreender e reafirmar o espírito como dimensão feminina em Deus.

Existem dois conceitos de espírito: um antigo e outro moderno. O conceito antigo fala de uma parte transcendente, divina, eterna, e de outra parte corporal, terrena, considerada a mais profunda experiência humana. As duas partes se separam pela morte. O conceito moderno, da fenomenologia do espírito, aparece depois de Kant e Hegel. Eles dizem que o espírito não é alguma coisa e sim um modo de ser da liberdade. E que o ser humano constrói a sua existência fora do espírito cósmico.

O espírito pertence ao ser humano, igualmente à terra e ao cosmos, bem como a vida. O oposto ao espírito é a morte como negação da vida. Espírito Cósmico, celebração da vida com saúde de todas as formas possíveis. Boa saúde proporciona uma vida plena, e de nossa saúde interior depende a saúde da totalidade.

Estudos indicam que médicos ligados às questões de espiritualidade costumam ser melhores profissionais que os demais. Compreende-se que o ser humano mais ajustado, com melhor compreensão da dor e do sofrimento alheio, será, com certeza, mais atencioso consigo e com seus pacientes. Assim, humanizará a prática médica.

Infelizmente, não existe disciplina de espiritualidade na maioria dos cursos de Medicina no Brasil. A disciplina optativa Saúde e espiritualidade, da Faculdade de Medicina da UFMG, é a segunda criada no país. O movimento liderado por mais de 740 estudantes e 50 professores foi o responsável pela criação da nova disciplina optativa.

A espiritualidade é mais ampla e mais aberta que a religião. A espiritualidade implica o universal; a religião, o particular. Simbolicamente é possível compreender as religiões como esferas menores imbricadas umas nas outras, sendo envolvidas pela espiritualidade. Por esse motivo as religiões estão no eixo da espiritualidade, sendo impossível separá-las. “Nos mais arcaicos níveis de cultura, viver como ser humano é, em si, um ato religioso, pois a alimentação, a vida sexual e o trabalho têm um valor sacramental. Em outras palavras, ser – ou antes, tornar-se – um homem significa ser religioso”, ensina o intelectual romeno Mircea Eliade.

Por mais que se pretenda uma visão unitária do homem no mundo, não há como fugir dos seus três aspectos distintos profundos: o físico, o mental e o espiritual. Há uma inter-relação dinâmica entre eles. De um modo geral, o aspecto dominante, mais superficial, é mais visível temporalmente. Uma pequena viagem pela história da humanidade, da pré-história à modernidade, permite compreender as devidas proporções que envolvem cada momento de predominância de um dos elementos daquela tríade.

Para a junção de espiritualidade e saúde, basta unir as terapias modernas e contemporâneas com as terapias milenares e perenes. Essa aproximação favorece o crescimento e desenvolvimento humanos por trabalhar com o hemisfério cerebral direito, da intuição, conjuntamente com o hemisfério esquerdo, da análise. E, como num milagre, sensação e intuição, sentimento e pensamento, intelecto e espírito aparecem unidos.

Convite à reflexão. Nas terapias milenares encontra-se uma proposta desafiadora, modelo de saúde e espiritualidade. Os terapeutas, teraf, desatadores de nós, eram pessoas que curavam por meios espirituais, desenvolvendo um contato íntimo com o doente, facilitando o seu poder de cura, através de sua associação com o aberto, o sagrado.

* Professor do departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina

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