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Nº 1593 - Ano 34
3.12.2007

Timor-Leste: como não ser invasiva, sendo invasiva?

Marília Costa de Faria*

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Desde 1999, o Timor-Leste, ilha do Sudeste asiático, ex-colônia de Portugal e que durante 24 anos viveu sob a dominação da Indonésia, vem passando por um processo de (re)construção com o auxílio de vários organismos internacionais e países, incluindo o Brasil.

Na área de educação, a cooperação brasileira desenvolve, por meio da Capes, o Programa de Qualificação de Docente e Ensino de Língua Portuguesa, que contempla cinco projetos – dois voltados para a capacitação de professores da escola básica, um específico do ensino da Língua Portuguesa e dois junto à Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), onde coordeno o programa de Promoção da Qualidade no Ensino de Ciências (PQE-Ciências).

Seus objetivos: fornecer e/ou elaborar materiais didáticos em português para o ensino de Matemática, Física, Química e Biologia; desenvolver ações didáticas – planejadas em conjunto com os respectivos chefes de departamento e com o decano da Faculdade de Educação – para melhorar a formação de professores e alunos nos cursos de graduação; e realizar eventos de iniciação científica e de divulgação da ciência.

O desafio é grande num contexto onde tudo é precário. Faltam materiais, professores, livros e infra-estrutura física. A organização institucional e as administrações acadêmicas são incipientes. Participei como observadora internacional da aplicação e correção das provas do vestibular e vi candidatos espalhados pelos corredores, sentados em cadeiras, muitos deles sob sol escaldante, tendo as coxas, literalmente, como único ponto de apoio para resolver as provas.

A correção dos testes, realizada manualmente, gera um clima de insegurança muito grande entre os gestores da Universidade quanto aos resultados. A divulgação da lista dos aprovados foi adiada para novas conferências nas correções, e a Reitoria solicitou reforço policial por temer a reação dos candidatos reprovados. O início das aulas do semestre letivo foi adiado três vezes devido a dificuldades na matrícula dos alunos.

O exemplo acima deixa claro que não é tarefa fácil conduzir qualquer projeto em Timor-Leste. Com o PQE-Ciências não é diferente. A nossa proposta para o seu desenvolvimento está centrada na revitalização dos laboratórios de Física, Química e Biologia e na criação do de Matemática. Cada laboratório é coordenado conjuntamente por um professor timorense e um brasileiro. Inspirados na experiência do Laboratório de Ensino de Matemática do Departamento de Matemática da UFMG, os laboratórios devem possuir biblioteca específica e contar com a participação de alunos bolsistas de iniciação científica e à docência, orientados por professores timorenses, sob coordenação dos professores brasileiros. A implantação desse modelo tem por objetivo garantir a continuidade do projeto após o nosso retorno ao Brasil.

No entanto, duas dificuldades devem ser salientadas: o envolvimento dos professores dos departamentos nas atividades dos laboratórios e a barreira da língua, já que poucos docentes e alunos dominam o português. A despeito deste último aspecto, o trabalho na sala de aula da graduação tem sido feito com o auxílio de uma timorense recém-formada em matemática que, dominando razoavelmente o português, faz uma mediação em tétum ou em língua indonésia.

Quanto aos professores, afora a questão da língua, temos constatado uma velada resistência às nossas propostas no PQE, o que creditamos à incompreensão deles em relação ao impacto que o modelo provocará no ensino da graduação e na formação de professores. A Universidade também não tem uma política de valorização do trabalho docente para além da sala de aula. Em Timor, o salário de um professor efetivo gira em torno de 250 dólares.

Entretanto, percebo uma questão muito mais forte: os timorenses querem ser senhores de seu próprio destino e determinar o futuro de seu país, o que fica evidente na sua história de busca pela libertação. Por isso, não fazem aquilo que não consideram importante para eles. E volto a deparar com a questão que me coloquei quando candidatei ao programa: como não ser invasiva, sendo invasiva? Como não ser, em um país com uma história recente tão traumática, de quase três décadas de invasão (afora o tempo de colonização de Portugal), mais um “internacional” (a terminologia que eles usam para definir os cooperantes) a dizer o que devem fazer? Como mostrar-lhes a importância de nossa proposta para a (re)construção de uma nação? Não tem sido fácil enfrentar esse desafio.

Tenho procurado entender um pouco da cultura deles e ouvi-los mais do que dizer o que devem fazer. São tantas as invasões que eles, desconfiados, dissimulam e, assim, nunca sabemos se o combinado será cumprido.

Um dos aspectos que dificultam um autogoverno em Timor-Leste é a falta de pessoal capacitado para a gestão dos órgãos e setores administrativos do país. Além disso, a maioria dos docentes da Universidade possui apenas a graduação. A criação de uma especialização em Educação, outro projeto que a cooperação brasileira desenvolve na UNTL e do qual participo, contribui para minorar a carência de qualificação em áreas como gestão da educação, educação ambiental, ensino da língua portuguesa e educação e ensino, que constituem as ênfases da especialização. Quase todos os seus alunos são gestores de órgãos ligados ao Ministério da Educação ou do Meio Ambiente, ou professores da Universidade, que também atuam em sua administração.

Assim, acredito que a implantação do curso de pós-graduação em Timor-Leste contribui efetivamente para que o povo timorense assuma a condução de seu destino em um futuro próximo. As palavras do reitor na abertura da especialização deram a dimensão real e histórica da criação do curso e de sua importância para o povo timorense. O que parecia pequeno ficou do tamanho do mundo.

* Professora aposentada do departamento de Matemática da UFMG. Coordenadora do projeto PQE-Ciências/Capes na Universidade Nacional Timor Lorosa’e

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