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Nº 1599 - Ano 34
03.03.2008

Democracia para quem, cara pálida?

Bruno Pinheiro Wanderley Reis*

Há vinte e poucos anos, no fim da ditadura, um slogan ganhou curso nas universidades brasileiras e terminou emplacando: Diretas pra reitor. Estou convencido de que este sucesso é algo a se lamentar – e reverter, a bem da sobrevivência da universidade pública brasileira. Por muitas razões.

A justificativa natural para as diretas prende-se a uma saudável aspiração por democracia. Não damos, porém, consideração detida a essa idéia: o que é uma universidade democrática? Em tese, uma decisão será democrática se nela os interesses afetados se fizerem ouvir e interferirem em seu resultado. Só que, afinal, quais são os interesses afetados aqui? São apenas os nossos? A quem serve a universidade? Se entendemos que ela serve ao público de maneira ampla, a conclusão é inevitável: o eleitorado relevante não se confina a nossos muros. Vamos então convocar a população de Minas para votar? Só que é difícil acreditar que a universidade estará mais apta a cumprir sua missão junto ao público quando o povo votar para reitor. Por que será?

De fato é simples: a universidade tem objetivos institucionais permanentes (independentes das vontades imediatas daqueles que a compõem ou que são por ela atendidos) que devem orientar as decisões que toma. Já o sufrágio universal destina-se a apurar as vontades dos eleitores, e só. O voto é, afinal, secreto, e sua validação dispensa argumentação. É legítimo postular que uma comunidade política não se presta a outra coisa senão servir às pessoas que nela vivem. Mas o mesmo não se pode dizer da universidade pública. Ela não pode curvar-se à vontade do público externo – porque é universidade. Mas tampouco pode subordinar-se apenas à vontade de seus membros – porque é pública. Aqui, não somos cidadãos. Somos servidores.

Além de problemas de legitimação externa, o costume atual tem graves implicações sobre nossa coesão institucional. O aspecto mais saliente quanto a isso é a insolúvel questão da ponderação dos votos de nosso eleitorado corporativo, que nossa precária imitação do sufrágio universal nos tem imposto. O mero fato de impelirmo-nos a ponderar votos nessas eleições deveria ser indicação suficiente das impropriedades envolvidas. A universidade é uma organização burocrática – e, como tal, hierárquica. Porém, quando nossos procedimentos conferem saliência à nossa divisão entre discentes, docentes e técnico-administrativos, ela se torna estamental.

Não se pode convidar uma pessoa a tomar parte numa decisão coletiva e depois conferir às suas opiniões um valor menor que às de seus pares. Isto insulta a dignidade humana. Se há razões para esperar que tais ou quais pessoas exerçam maior influência sobre os destinos da universidade, então esta influência deve se mostrar publicamente, formalmente, na composição do órgão responsável pela decisão.

É simplesmente inconsistente convidarmos a todos para tomar parte numa decisão para, em seguida, esclarecermos que as opiniões de uns valerão 80 vezes mais que as de outros. Deixamos de lado o que há de melhor no sufrágio – o igualitarismo que nos impõe a obrigação de considerarmos a opinião de cada um – para ficarmos com o que há de pior nele – a remissão a uma agregação massificada de votos, que permite contornar o debate ou prescindir dele. Não por acaso, estudantes e funcionários têm rejeitado com veemência a forte desqualificação de seus votos – sinal de que o insulto não é figura de retórica.

Mas há outro problema grave. Hoje o primeiro ato formal do processo é a inscrição de chapas de candidatos aos cargos em disputa. Mas, como assim, candidatos? De quem? Em nome de quê? Não há convenções, não há prévias, pois afinal não há (nem poderia haver) partidos – e não chega a haver imprensa que não seja a oficial. Toda conversa sobre candidaturas é não pública, estritamente informal. Quando o eleitor típico se dá conta de que haverá eleição, os candidatos já estão registrados. E o jogo, feito.

Complexa é a organização institucional da universidade. Complexos os seus propósitos, complexas as relações com a sociedade que a mantém. É preciso conceber instrumentos que respeitem essa complexidade e propiciem deliberação conjunta por debate publicamente referido – e não subordiná-los a importações caricatas da “grande política”.

Em nome dos valores que nos constituem, temos de ser capazes de adensar o debate coletivo formal e a deliberação pública institucionalmente orientada, em vez de simplesmente contarmos cabeças com pesos variados. Para tanto, podemos nos mover rumo à constituição de algum órgão eleito por todo o corpo acadêmico, possivelmente complementado por membros natos, que assuma a responsabilidade de compor, por escrutínios sucessivos com quórum qualificado (três quartos?), sem candidaturas formalmente inscritas, listas de nomes que logrem consenso interno e respaldo externo suficientes para dirigir a universidade.

Hoje, ao contrário, somos presa de um procedimento que insulta funcionários e estudantes, é desprezado por muitos professores, fragmenta profundamente a instituição e, por fim, não dá qualquer consideração – sequer formal – ao público externo, a quem devemos nossa própria razão de ser. Se nosso propósito é nos destruirmos, estamos bem servidos.

* Professor do departamento de Ciência Política da Fafich

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