Busca no site da UFMG

Nº 1599 - Ano 34
03.03.2008

Quando arte e técnica se confundem

Cecor quer aprimorar estudos de materiais usados em obras de arte; trabalho ajuda a identificar falsificações

Ana Maria Vieira

O Projeto Portinari tornou-se célebre ao realizar um dos mais extensos inventários da obra de um artista brasileiro. Base de referência para a pesquisa documental sobre o trabalho de Candido Portinari, as informações e imagens foram reunidas em catálogo lançado em 2004 que, até então, parecia cumprir missão paralela, mas essencial no meio artístico: inibir falsificação das telas desse pintor do modernismo. Na prática, o esforço não foi suficiente para conter a crescente ação de fraudadores, e os coordenadores da iniciativa procuraram a UFMG em busca de soluções.

“Essa modalidade de catálogo produzida pelo Projeto, denominada raisonné, contém informações importantes que abrangem análise estilístico-formal das obras, sua trajetória no mercado, entrevistas com o autor e outros documentos, mas exclui dados cruciais sobre aspectos materiais das pinturas, que facilitariam a identificação de falsificações, além de ampliar o arco de conhecimento sobre sua produção”, observa Luiz Souza, professor e vice-diretor da Escola de Belas-Artes.

A lacuna, como ele salienta, é causada pela prevalência de uma linha mais tradicional de trabalho ligada a recursos de avaliação advindos da história da arte. Estudos focados no conhecimento da materialidade da obra constituem, no entanto, alguns dos diferenciais do trabalho do Laboratório de Ciência da Conservação (Lacicor), órgão dedicado à pesquisa científica coordenado por Souza e que integra o Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Cecor) da Escola.O centro é o único no país a reunir grupo de especialistas capaz de realizar abordagens multidisciplinares sobre a conservação e restauração dos objetos de arte.

Fiel a essa visão múltipla, Souza finaliza acordo com a direção do Projeto Portinari para empreender mapeamento das técnicas construtivas da obra do artista e dos materiais usados em sua composição. A linha de trabalho, conhecida como história da arte técnica, envolve desde ferramentas tradicionais da própria história da arte, como os estudos estilístico-formais, até métodos físico-químicos para análise dos elementos constituintes da obra, que freqüentemente requerem uso intensivo de equipamentos de microscopia eletrônica e espectrômetro de infravermelho, além de técnicas de cromatografia e difração e fluorescência de raios-X. Nos espectrômetros, por exemplo, é feito o reconhecimento de alguns pigmentos e componentes orgânicos existentes nas pinturas – ceras, colas, gomas, resinas e óleos.

Foca Lisboa
luiz
Luiz Souza, do Cecor: estudos centrados no conhecimento da materialidade das obras de arte

De acordo com o professor Paulo Batista, também da equipe do Lacicor, investigações desse tipo são cada vez mais complexas, já que os artistas contemporâneos tendem a realizar muitas experimentações em suas produções. “Eles recorrem a uma ampla gama de materiais”, diz. A observação é compartilhada pelo conservador-restaurador Mário Sousa Júnior, do Cecor. Habituado ao trabalho de intervenções em obras de arte, ele afirma ser grande o número de pintores que utilizam tintas de parede e outros materiais específicos da construção civil. “O controle de qualidade desses produtos pode comprometer, no futuro, a restauração de telas”, exemplifica Sousa, lembrando ainda que a composição original deles também sofre variação ao longo dos anos. Nesse caso, o conhecimento da tecnologia empregada nas produções pode ser insuficiente para os trabalhos de conservação e autenticação das obras.

Reconhecimento

O segmento da pesquisa que aborda a tecnologia na arte é considerado tão essencial – e urgente – para a conservação dos acervos artísticos que, em junho próximo, Luiz Souza deverá apresentar projeto ao Instituto Getty de Conservação visando ao mapeamento inédito dos recursos utilizados pelos artistas modernistas brasileiros. No período, Souza e outros 19 especialistas participarão de reunião convocada pelo Instituto, em Nova York, destinada a traçar estratégias de conservação e restauração para a arte contemporânea mundial.

Apesar do reconhecimento já obtido pelo grupo de pesquisa do Lacicor – visível também no recente convite para integrar a rede Eu-artech de laboratórios europeus especializados em análise científica de obras de arte –, o professor considera que a especialidade conservação-restauração necessita receber mais atenção das agências oficiais de fomento. “Submetemos nossos projetos à área de artes ou história da arte, pois inexiste o item específico desse tipo de estudo entre os campos estabelecidos pelo CNPq”, afirma.

O Lacicor lidera a Rede de Ciência e Tecnologia para a Conservação Integrada de Bens Culturais (Recicor) e abriga grupo de pesquisa homônimo na UFMG, financiado pela Finep. Em 1995, com a análise de um lote de pinturas falsas, Luiz Souza abriu nova janela de investigação na UFMG: a autenticação de obras de arte, derivada dos estudos e das intervenções do grupo. Atualmente, a equipe especializada nesse segmento reúne grafodocumentocopista – responsável pela averiguação de assinaturas –, historiador da arte, conservador-restaurador, químico e fotógrafo especializado em documentação de imagens científicas.

Laboratório já analisou cerca de 180 obras

Arquivo Lacicor/Esc.Belas-Artes
cacor
Pintura inglesa do século 18, cujo provável autor é Thomas Gainsborough, está sendo analisada pela equipe do Lacicor

Relatos pouco conhecidos que se incorporam à história de obras de arte em busca de autenticação encontram, muitas vezes, ambientação temporária nos laboratórios do Cecor. O órgão, que já atraía a atenção pela atuação competente em sua área, tem sido bastante requisitado no mercado para emprestar seus
conhecimentos a trabalhos de identificação de fraudes em objetos de alto valor.

Um dos fatos mais recentes que sua equipe protagonizou envolve o retorno ao Brasil do único registro em pintura da família do imperador D. João VI, cujo paradeiro era desconhecido há décadas. De autoria de Jean-Baptiste Debret, a tela retrata a cerimônia do segundo casamento de D. Pedro I com a princesa Amelia de Leuchtenberg. Há poucos anos, o quadro foi redescoberto por marchand carioca em um antiquário de Portugal.

Adquirida por preço módico, a pintura saiu enfim do fundo da loja, onde se exibia esquecida e anônima a olhos desatentos, para voar em direção ao Rio de Janeiro. Logo em seguida, seis minúsculos fragmentos extraídos dela percorreram as instalações do Lacicor. ”Recolhi as amostras no Rio em 2006 para realizar análise de materiais e técnicas pictóricas empregadas pelo artista”, relembra Luiz Souza.

Com doutorado em química desenvolvido na área de ciência da conservação, Souza foi co-responsável pela verificação da autenticidade da obra de Debret, ao identificar nela os pigmentos azul da prússia e cromato de chumbo, somente utilizados em pinturas a partir de 1750 e 1818, respectivamente.

“Não há anacronismo entre os materiais encontrados e aqueles disponíveis no mercado quando ocorreu a produção da obra”, escreve o professor no relatório final da análise, agregando-lhe ainda outros dados históricos como o ano do casamento figurado na tela (1829) e a informação de que o artista a executou no Brasil, onde permaneceu até 1831.

Após ter comprovada sua autenticidade, a obra alcançou cifra milionária e hoje pertence ao acervo de um banco, em São Paulo. A exemplo da pintura do artista francês, outras telas, esculturas e obras sobre papel cumpriram o mesmo percurso no Lacicor. Nos últimos 12 anos, o Laboratório analisou aproximadamente 180 obras de autores diversos com esse objetivo; cerca de 150 eram falsas.

Atualmente, uma tela de Alberto di Cavalcanti está sob análise da equipe, a pedido de um grupo financeiro. Obras de Lígia Clark, Alberto da Veiga Guignard, Pancetti, Djanira e Manuel Santiago também freqüentam as bancadas do Lacinor. Outra obra em avaliação é uma pintura inglesa do século 18, cujo provável autor é Thomas Gainsborough, um dos mais importantes artistas da época.