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Nº 1640 - Ano 35
9.2.2009

opiniao

Educar é aprender a sair da caverna

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Cheguei à conclusão expressa no título deste artigo após a leitura de A república, de Platão, e A caverna, de José Saramago. O filósofo ateniense apresenta sua famosa alegoria da caverna como metáfora da ignorância humana quanto ao conhecimento da verdade. O escritor português recupera, de forma paródica, a caverna platônica, mostrando que, mesmo em outra situação espacial e temporal, quase 2.500 anos após o texto grego, os homens continuam submetidos às sombras, pensando que elas são a verdade.

No livro VII de A república, Platão narra que Sócrates propôs a seus ouvintes imaginarem um grupo de prisioneiros acorrentados numa caverna, sem nunca poder se virar. Lá fora há uma fogueira, cujas chamas projetam dentro da caverna as sombras de quem passa diante da entrada. Os prisioneiros dão a essas sombras o nome próprio das coisas que elas representavam e lhes atribuem ainda as vozes que o eco da caverna repete, acreditando que as sombras é que falam. Os prisioneiros não poderiam acreditar que houvesse nada de real e verdadeiro fora das imagens que desfilavam à sua frente na parede daquele ambiente.

Imaginem, na sequência, que um daqueles cativos, livrando-se das amarras, poderá ver que aquilo que ele enxergava antes eram apenas sombras de seres e objetos que representavam pessoas e animais. E, prosseguindo, o homem chegaria à saída da caverna e alcançaria a própria luz do Sol, e só então compreenderia a tristeza das ilusões em que antes se encontrava e que é o modo como ainda se encontram os companheiros de escravidão que permanecem naquela primeira morada.

Platão esclarece, então, que o antro subterrâneo é como o mundo visível; o fogo que o ilumina é a luz do sol; o cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível, onde está a ideia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer; a ideia do bem é ligada à razão, causa universal de tudo o que é belo e bom, da luz no mundo visível e da inteligência e da verdade no mundo invisível. Permanecer na caverna, portanto, é permanecer na ilusão da verdade, é crer no mundo das sombras e não sair do mundo visível.

Em A caverna, de Saramago, o antro subterrâneo de Platão tem dezenas de andares e pode ser percebido no colossal centro econômico existente na cidade, prédio comercial gigantesco, com janelas que não podem ser abertas e com luzes e recursos artificiais que atraem e estimulam insistentemente o consumo. O conflito da história se dá entre o pragmatismo do centro econômico urbano, voltado como máquina desumana exclusivamente para o lucro dos negócios, e o que representa uma olaria artesanal numa aldeia próxima, onde pai e filha fazem louças de barro, comungando de profundo entendimento familiar afetivo. Cipriano, protagonista da obra, é o dono da olaria e pai de Marta; o marido de Marta é Marçal, guarda interno do centro econômico; ele deverá mudar-se para o prédio monumental na cidade, com a esposa e o sogro, quando for promovido a guarda residente. As louças de barro fabricadas na olaria são levadas e vendidas, periodicamente, no centro comercial.

O consumo regula a vida das pessoas, e a primeira aflição aguda da história aparece com o cancelamento da compra das louças em função da oferta dos mesmos objetos, só que feitos de plástico. Cipriano compara os objetos de plástico a meras imitações, as quais, como as sombras platônicas falsas, fingem ser verdadeiros, mas não o são. Implacável, a tecnologia mostra seu poder na lógica do consumo e cega seus fregueses. O centro econômico, com um obscurantismo planejado para converter pessoas em clientes potenciais, é uma alegoria do distanciamento progressivo dos bens verdadeiros (invisíveis), distanciamento instalado hoje, irreversivelmente, nos seres humanos massificados pelo consumismo.

O final do livro de Saramago é apoteótico do ponto de vista da exacerbação da paródia do mito platônico dentro da monumentalidade comercial contemporânea. A própria caverna de Platão não só teria existido “realmente” como foi encontrada nas profundezas subterrâneas do centro econômico, com seis pessoas mumificadas, amarradas de frente a uma parede cavernosa. Tragicômico, o relato informa que o local recém-descoberto era mantido com rigorosa vigilância e proibido de ser visto.
Cipriano, conseguindo chegar lá, entendeu que aquelas pessoas que ali morreram, sem conhecer a verdadeira existência humana, são eles próprios e todos que habitam aquele centro. Entende, também, que é preciso livrar-se das amarras e, junto com a filha, o genro, com o cachorro Achado e a companheira Isaura, parte de furgoneta, num momento de céu ainda pouco aberto, para um lugar que ainda não sabe qual será. Depois de alguns quilômetros percorridos, Marçal conta que, ao abandonar o serviço e sair do prédio, vira, na fachada do centro econômico, um cartaz que anunciava para breve a abertura ao público da caverna de Platão, única no mundo, com entradas já à venda.

Nem a caverna de Platão é poupada nos negócios que comandam o mundo contemporâneo. Dessacralizam-se os valores da verdadeira existência. Graças à perspicácia do filósofo ateniense, podemos educar os nossos sentidos para não considerarmos as sombras como realidades. Munidos da ironia de Saramago, também podemos educar os nossos sentidos e perceber que tudo vale a pena, se a alma não estiver à venda.

* Jornalista. Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Professor do curso de Comunicação e Marketing da Faculdade Promove de Sete Lagoas (MG)

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