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Nº 1658 - Ano 35
22.6.2009

opiniao

Vestibularização do ensino médio

Lucas Rodrigues Cunha*

Ao chegar ao campus da UFMG na Pampulha, há alguns dias, passei por um estudante do ensino médio do Coltec com uma camiseta cujos dizeres eu já havia lido em roupas de calouros da UFMG. Ela tinha uma estampa com vários preços de mensalidades de escolas privadas de ensino médio; na parte de trás da camisa do estudante, lia-se a mensagem “não tem preço”, alusão a uma propaganda de uma operadora de cartões de crédito. O contraste entre o sistema de educação superior público e privado é matizado por referências simbólicas e, por suposto, valorativas, que, de alguma forma, contagiam a lógica de orientação das escolhas dos estudantes do ensino médio. Embora as escolas e cursos pré-vestibulares exibam suas taxas de aprovação no vestibular como forma de promoção, uma estratégia propagandística, são as universidades, no atual cenário de expansão do ensino superior existente no país, que dão status de ensino de qualidade às escolas e cursos pré-vestibulares.

Não é exagerado afirmar que as mudanças que estão a ocorrer nos vestibulares de universidades públicas no Brasil trarão com elas reformulações substanciais nos currículos do ensino médio. Os vestibulares de instituições públicas de ensino superior como a UFMG são algumas vezes a meta a ser perseguida por escolas de ensino médio. As regras do edital do vestibular da UFMG, ainda que baseadas em critérios próprios da Universidade, acabam por conformar um padrão de habilidades e competências a serem desenvolvidas nas escolas de educação básica. Ou seja, o vestibular define os conteúdos e habilidades cobrados no ensino médio. Isso se deve ao fato de que, nas últimas décadas, o ensino superior no Brasil é tomado como a principal titulação para a inserção dos jovens no mundo do trabalho.

Esse fato reforça a evidência de que mudanças no sistema de seleção para ingresso nas universidades públicas terão impacto nos currículos da educação básica como um todo. Um exemplo disso é o quanto os livros de literatura indicados no vestibular da UFMG servem de base para o trabalho das disciplinas de literatura nos anos finais do ensino médio em escolas de Minas Gerais.

Nesse cenário, o ensino médio é o mais imediatamente afetado pelas mudanças nas regras do vestibular, principalmente nos seus dois anos finais. Os vestibulares das universidades públicas, como a UFMG, acabam por formatar um padrão de conteúdos e habilidades a ser seguido pelas escolas de educação básica e pelos cursos pré-vestibulares. A “vestibularização” do ensino médio, por sua vez, depende de um sistema cujas regras são suficientemente estáveis e claras para que os estudantes, professores e coordenadores pedagógicos saibam onde focalizarão os conteúdos a serem trabalhados. No entanto, o sistema brasileiro está passando por uma transição, na qual a expansão de vagas e as mudanças do vestibular poderão modificar completamente a estrutura de incentivos dos candidatos ao ensino superior. Posto que grande parte dos estudantes concluintes do ensino médio de Minas Gerais se candidata ao vestibular da UFMG, e este é o maior do estado, a comunidade acadêmica se depara com questões do tipo: qual é o perfil dos estudantes que a UFMG tentará recrutar e quais serão os critérios para tal seleção?

O desenho dos novos critérios de seleção para universidades públicas federais no Brasil proposto pelo MEC com o novo Enem deve estar preocupado com vieses de seleção flagrantemente indesejáveis que, de alguma forma, ainda persistem no sistema atual, dentro e fora da UFMG. As políticas de expansão de vagas, de acesso e manutenção a grupos não- contemplados na universidade – sejam étnicos ou socioeconômicos – precisam estar conjugadas com as políticas globais para o ensino superior, de tal maneira que efeitos perversos não se derivem imediatamente das mudanças que visam à eliminação de desigualdades, por vezes cruéis e excludentes.

A possibilidade da consolidação de um sistema integrado de seleção para universidades públicas e privadas no Brasil, como já existe em alguns países, é um passo adiante na constituição de um modelo mais equânime e inclusivo. A definição do desempenho no Enem como critério de seleção da primeira etapa do vestibular da UFMG se configura como uma unificação parcial da nossa universidade ao sistema nacional, na medida em que a UFMG continuaria a realizar a segunda etapa do seu vestibular separadamente.

Ao contrário da “vestibularização” do ensino médio, as possíveis mudanças nos critérios de seleção para as universidades públicas introduzem variáveis tipicamente pedagógicas ao debate sobre novas regras. Isso contribui fortemente para a constituição de um sistema de vestibular nacional sensível a fatores ligados às habilidades, competências e capacidades dos candidatos ao mesmo tempo em que corrige desigualdades historicamente conformadas.

Mesmo que a educação pública “não tenha preço”, como diz a mensagem na camiseta usada quase como um uniforme, é preciso refletir sobre o tema. Embora não possa ser mercantilizada como um produto vendável, precificável e banalizável, a educação possui custos em qualquer país no mundo. E os não-econômicos, por vezes, são mais importantes quando se discutem mudanças no sistema.

* Cientista social e estudante de pós-graduação em Ciência Política da UFMG

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