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Nº 1661 - Ano 35
27.7.2009

opiniao

As pedras invisíveis nos sapatos da lama institucional

Daniel Rodrigues Costa*

“Parece que vai chover hoje” e “O dia está quente, não”? são exemplos de frases que usamos para puxar conversa com alguém, quando a intenção é justamente passar o tempo. Mas, tirante as inocentes análises meteorológicas, é o espírito crítico que costuma balizar os nossos papos ocasionais. Critica-se o Senado, o Congresso, o Judiciário, o Governo, a crise econômica mundial, o tráfego, a comida do almoço, a fila do cinema. Raramente uma boa alma se dispõe a oferecer a face a tapa por um elogio filantrópico. “Eu faria diferente”, conclui o pensamento do senso comum observador e, também, inerte, do cotidiano. É uma ilusão coletiva, como quando um torcedor vê um jogo de futebol e reclama dos jogadores e do técnico, achando ser capaz de coisa melhor.

Abre-se, então, um abismo entre a sociedade e o Eu, onde este se vê fora dos problemas da comunidade, esquecendo a máxima de Ghandi: “Seja você a mudança que quer ver no mundo”. Soluções fáceis e irrefletidas são soluções falsas, sem sustentação na realidade concreta, que vai muito além da realidade no imaginário surreal do senso comum. O fato é que se ignora quem, na lapidante rotina do trabalho nas instituições públicas, cumpre com o seu dever. Ignora-se, porque, hipoteticamente, o funcionário não fez nada de demais, pois era sua função cumprir determinada tarefa com ética e eficácia. Mas todos estamos cansados de saber que não é o que acontece no dia-a-dia. A cultura do ser-honesto-é-ser-besta se prolifera mais do que erva daninha no verão tropical (e de preferência na Floresta Amazônica, junto com jiboias e sucuris). A normalidade toma conta da nossa reação em todas as notícias de desvios de verbas, apadrinhamentos, castelos particulares de deputados estaduais e conselheiros de Tribunais de Contas. “Não se podia esperar outra coisa”, ecoa o reiterado senso comum nas cabeças céticas da população. Reclama-se, alivia-se, esquece-se.

Como aluno da Universidade Federal de Minas Gerais, tenho reparado o quanto são esquecidos os heróis do cotidiano. São os casos dos professores que comparecem a todas as aulas sem empurrarem nenhum mestrando em seu lugar, numa postura oposta à daqueles que viajam para conferências na Alemanha, Itália, França, Suécia, BENELUX, esquecendo seu dever como lecionador da matéria dos futuros profissionais brasileiros, e, provavelmente, futuros líderes da nação. Destacaria ainda os alunos que vão às aulas todos os dias, mesmo sabendo da possibilidade de algum professor não ir à aula por “estar preso no trabalho” (irônico, não?) e que, mesmo cansados de uma jornada estressante, ainda sobem dezenas de lances de escada, como é o caso da Faculdade de Direito, e, suados e esbaforidos, recebem a frustrante notícia que os obrigará a dar meia volta.

Também merecem figurar nessa galeria de heróis anônimos os servidores públicos que fazem, de fato, o Estado funcionar, seguindo ordens de – não raros – vaidosos, conservadores e retrógrados líderes, seja no Judiciário, no Legislativo, no Executivo, para depois ver os mesmos líderes venderem liminares, burlarem licitações (tornando-as ilícitas ações), privatizarem empresas públicas de serviços de suma importância no País, desviarem milhões de reais para paraísos fiscais que enriquecem suíças e ilhas caymans às custas de nossa tímida capacidade fiscalizatória, tornando sem sentido as palavras do art. 37 da Constituição Federal de 1988: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)”. Por que não fazer com que sejam cumpridos por baixo, e não mais esperar de cima? Por que não minar a base rota e fundar novos alicerces? Por que esperar o alívio respiratório que talvez nunca virá desta congestão institucional?

Merecem palmas os invisíveis guerreiros que cumprem sua missão – e a cumprem sem se vangloriar. Seguem no caminho de Drummond, com muitas pedras que acabam entrando de vez em quando nos sapatos das autoridades, como o polêmico magistrado da Vara Criminal de Contagem e o incurvável delegado federal que enfrentou o banqueiro mais poderoso do país. Merecem aplausos os cidadãos que, sem se queixarem demais, pagam seus impostos, jogam o lixo no lixo, cumprem o seu dever como trabalhador, pai, marido, mãe, mestre ou amante, e não se embriagam pelo desejo de poder para oprimir, após ser oprimido por toda sua vida, mas, como propõe Paulo Freire, é um sujeito sedento por mudanças. São indivíduos que não se ocupam de palavras ou de discursos vazios (como este aqui talvez esteja sendo), mas de ações, atitudes e gestos simples que podem ser lembrados para sempre por outras pessoas.

Por fim, citando Fernando Pessoa, “estou farto de semideuses! Onde há pessoas no mundo?”. Onde estão as pessoas que, mesmo endurecendo, não perdem a ternura jamais? Basta uma mudança do ponto de vista: antes de olhar o topo da pirâmide e apontar o dedo para o que está errado, aponte o dedo para o que está certo ao seu lado. Eis o espelho do que deveríamos construir: não um castelo de cartas de baralho, com frágeis estruturas, mas uma sólida base de valores que queremos para nós enquanto indivíduos inseridos em uma sociedade plural.

*Aluno do 3º período de Direito da UFMG e servidor público

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