Busca no site da UFMG

Nº 1813 - Ano 40
25.3.2013

Saudades dos tempos de senzala

Doutoranda da UFMG ganha prêmio do CNPq com estudo que analisa os discursos que permeiam as relações entre patroas e domésticas

Gabriella Praça

As relações profissionais no mercado de trabalho doméstico brasileiro mantêm resquícios dos tempos da sociedade escravocrata. Esse é o mote do artigo As patroas sobre as empregadas: discursos classistas e saudosistas das relações de escravidão, vencedor da  8ª edição do prêmio nacional Construindo a Igualdade de Gênero, na categoria Mestre e Estudante de Doutorado. A autora, Juliana Teixeira, é aluna de doutorado do Centro de Pós-graduação em Administração (Cepead) da UFMG e pesquisadora do Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (Neos).

Para analisar os discursos construídos sobre essa categoria profissional, cujas mulheres representam 93,4% do total, segundo dados de 2010 do IBGE, a pesquisadora buscou a expressão “empregada doméstica” no Orkut, encontrando 41 comunidades relacionadas. O grupo “Vítimas de empregada doméstica” foi escolhido como objeto de pesquisa, por apresentar 1.485 membros – maior número entre as comunidades encontradas. Como a visualização das postagens é aberta a não membros, foi possível ter acesso a todas as discussões. Segundo Juliana, embora o Orkut tenha perdido espaço no Brasil, a comunidade ainda está ativa e tem postagens feitas até 2012. Para ela, as mensagens escancaram preconceitos raciais, sexuais e de classe, que são, em geral, mascarados na sociedade brasileira.

Dicotomia

Vitimização das patroas e vilanização das empregadas, disseminação de estereótipos, delimitação espacial, moral e cultural entre pobres e ricos e características peculiares ao trabalho escravo foram alguns dos elementos ideológicos identificados nas mensagens online. “Nota-se uma visão dicotômica da realidade, pois as empregadas são sempre as vilãs das histórias, e as patroas, as boazinhas”, analisa Juliana Teixeira. Os estereótipos se relacionam a diversos aspectos, a começar pela criminalidade, generalizada como comportamento comum a todas as domésticas. “Certas postagens, por exemplo, dizem que empregada ideal é aquela que mostra a bolsa antes de sair do trabalho, ou que as casas que são roubadas sempre têm uma empregada doméstica”, revela.

A sexualidade também aparece como campo permeado por preconceito nos discursos analisados. Segundo a autora, a visão que as patroas demonstram ter da classe profissional é a de ser formada por vagabundas – as chamadas “piriguetes” –, ou por evangélicas, tidas como “falsas santas”, que utilizam a religião para se mostrarem boas trabalhadoras.

“Essa imagem foi historicamente construída, pois, no período escravocrata, muitas mulheres eram servas sexuais”, salienta Juliana, acrescentando que a questão está ligada também à imagem da mulher negra no Brasil. Para ela, a sensualização da figura da “mulata” no Brasil abrange fortemente a classe das domésticas, negras em sua maioria.

Os discursos também são marcados pela diferenciação entre pobres e ricos – e pelo suposto risco que as domésticas representam por se constituírem em elo com regiões periféricas das cidades. “Ela rompe com essa delimitação espacial quando entra nas casas em que trabalha, levando consigo elementos culturais de seu meio”, explica a doutoranda.

De acordo com Juliana, ao revelarem saudosismo em relação ao período da escravidão, os discursos presentes na comunidade evidenciam a reação das patroas diante das mudanças ocorridas nos últimos anos no cenário de trabalho doméstico no Brasil. “Há escassez de domésticas que procuram emprego como mensalistas e crescimento do número de diaristas, o que proporciona maior autonomia a essas mulheres nas relações de trabalho”, ressalta ela.

O artigo premiado se insere em linha de pesquisa que integra movimento contra-hegemônico no campo da Administração, em geral marcado por estudos mais gerencialistas, direcionados aos problemas de grandes organizações e de seus líderes. Juliana Teixeira é orientada pelo professor Alexandre de Pádua Carrieri, que também coordena o grupo de pesquisa Neos, cuja proposta é articular teorias organizacionais como o pensamento social, estabelecendo interfaces com disciplinas como sociologia, antropologia, psicologia, filosofia e linguística