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Nº 1816 - Ano 39
15.4.2013

opiniao

A condição da mulher à luz do caso Eliza Samúdio

Maria do Carmo de Oliveira Vargas*

À Estela Scheinvar – intelectual de primeira linha
“A essência dos Direitos Humanos é o direito de ter direitos”
Hannah Arendt

Passado o calor do momento, recorremos aqui à metáfora hegeliana do “voo do pássaro de minerva”, que passa a noite (o presente) a reexaminar o dia (o passado). Creio que ela ilustra reflexão que proponho fazer sobre o trágico caso Eliza Samudio, que veio à tona em 2010. Na época, os órgãos de comunicação e comentários do cotidiano buscavam desqualificar-lhe a imagem, estigmatizando-a como uma mulher de comportamento “duvidoso”.

Parte significativa da opinião pública que hoje se levanta contra o racismo, a homofobia e o desprezo aos direitos das minorias não perdia a chance de aventar dúvidas quanto à culpa da vítima sobre sua própria morte. A jovem chegou a buscar amparo legal em defesa de sua vida e foi à mídia para denunciar as violências sofridas pelo goleiro Bruno e sua “equipe”. Esforço vão. Tratava-se de uma mulher, distante da família e moralmente desqualificável. Mesmo sem respaldo algum, ela insistiu em direção à Justiça e à imprensa.

Se “o direito não socorre aos que dormem”, quem dormiu nesse caso? Por quais motivos dormiu? De acordo com a ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), Eleonora Menicucci, a violência contra a mulher ainda está fora de controle, mesmo depois da aprovação da emblemática Lei Maria da Penha, marco legal de especial significado para essa persistente ferida social. Sabemos que cabe à lei impulsionar e “regular” os comportamentos das coletividades, mas não se apresentam como ato público capaz de mudar abruptamente determinadas práticas sociais historicamente construídas. Ou silenciadas.

Convém recuperar que na mesma época Luana Piovani, mulher presente na grande mídia, loura, da Zona Sul do Rio de Janeiro, tendo sofrido violência por parte do então namorado, também não se calou. Recorreu ao apoio judicial, que atendeu prontamente à denúncia. Seu agressor não podia sequer permanecer no mesmo ambiente que ela. Nada mais coerente e inegável foi o valor da postura da ex-modelo, pois permitiu perceber uma quase obviedade – mulheres de todas as classes sociais podem padecer desse mal.

Poderíamos estabelecer analogia entre os dois casos? Sim e não.

Sim, porque se configuravam como questões de agressão evidente contra a mulher e como crimes expressos em lei, que dão hoje tônica às várias políticas públicas de combate à violência contra a mulher e de promoção da igualdade de gênero. A legitimidade das duas denúncias era, portanto, inquestionável. E não, porque eram mulheres diferentes. Eliza se contrapunha ao papel de boa moça, naturalizado e cristalizado no imaginário brasileiro. Havia o julgamento social, tácito e sumário, da garota da periferia de Foz do Iguaçu que estaria distante do mais que dissimulado e diligente padrão do “bom” comportamento feminino. Ficamos, aqui, relutantemente nos questionando quais seriam os parâmetros presumíveis à boa mulher. Enfim, Eliza “tinha culpa no cartório”. Já Luana Piovani, articulada e com recursos financeiros suficientes, teve seu direito à proteção preservado. Se ambas as denúncias se assentavam sobre o mesmo princípio de legitimidade, por que vemos agora desfechos tão diferentes? E, convenhamos, a condenação dos algozes de Eliza não redime a irrecuperável perda da criança que crescerá sem a mãe e da mãe que viverá sem a filha.

A obra Imprensa e agenda dos direitos das mulheres – uma análise das tendências da cobertura jornalística (2011) ajuda a compreender os espinhos do problema e a construção midiática acerca de casos como o de Eliza Samudio, que culminou com o espetaculoso julgamento. Realizada em parceria entre o Observatório Brasil da Igualdade de Gênero e a Secretaria de Políticas para as Mulheres, a publicação teve como foco suscitar a reflexão acerca do tratamento dado à agenda das mulheres pelos meios de comunicação no Brasil. Uma das conclusões alcançadas foi que a principal característica da cobertura da imprensa nacional, no que tange a violência contra a mulher, é a individualização do problema, predominantemente via relato policial masculino e, especialmente, nas colunas de notícias locais.

O curioso, conforme a publicação que trabalhou com amostra de textos jornalísticos, é que menos de 6% aparecem na seção de opinião e apenas 2% das matérias abordam as políticas públicas atinentes ao tema, sendo que os acordos e as convenções internacionais não foram ao menos citados. Enfim, a abordagem jornalística, de acordo com a amostra analisada, não prima pelo caráter educativo e reflexivo sobre a condição da mulher e do problema social em questão.

Voltando ao ideal aristotélico, definido em Política, de que cabe ao homem mais que “viver junto”, mas “bem viver junto”, é necessário reconhecer o valor de o tema ocupar agenda acadêmica, judicial e política. Em âmbito mundial, em março passado, a ONU Mulheres reuniu, na cidade de Nova York, lideranças internacionais ligadas ao tema, firmando novo acordo, cujo “objetivo é garantir a segurança e acesso à justiça, assegurar seus direitos sexuais e reprodutivos, fazer frente à exploração sexual e ao tráfico de mulheres e apoiar a autonomia das mulheres em situação de violência” [grifo nosso]. Mesmo diante de todo o esforço, acreditamos que os indicativos reais de superação da discriminação e do rótulo imputado às vítimas ainda sejam tímidos. Trata-se de mudança lenta, que depende da construção de novo imaginário e de contexto de respeito ao outro, ao corpo físico e simbólico da mulher.

O “caso Eliza” acaba por evidenciar duas questões: a vulnerabilidade feminina frente à violência masculina e a lamentável diferença entre as mulheres – no direito ou no acesso a ele.

*Graduada em História pela UFMG. Doutoranda do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)