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Nº 1829 - Ano 39
15.07.2013

Experimentar o comum

Em sua 45ª edição, que será realizada de 21 a 28 de julho em Diamantina, Festival de Inverno aprofundará proposta de romper com as divisões entre os saberes

Da redação

O 45º Festival de Inverno da UFMG, que acontece entre 21 e 28 de julho em Diamantina, mantém o conceito de bem comum como tema e busca, de modo ainda mais intenso, a circulação não hierarquizada de saberes e experiências a serem vivenciadas pelos participantes do Festival e moradores da cidade. Sem desconhecer as desigualdades que fraturam a vida social, o Festival propicia uma experiência partilhada de saberes (como aqueles provenientes das culturas indígenas e afro-brasileiras) e das múltiplas formas de vida que o espaço ­urbano abriga, em especial as que tensionam a divisão entre centro e periferia.

Para o professor César Guimarães, do Departamento de Comunicação Social, coordenador-geral do Festival desde o ano passado, o novo desenho da programação se empenha em dar uma forma ao comum, procurando romper com as divisões que separam os saberes acadêmico e tradicional, inaugurando, assim, novos campos de experiência sensível. “Como atividade de extensão, o Festival procura fazer com que a Universidade se torne espaço de hospitalidade capaz de acolher as múltiplas formas de invenção da cultura, sem circunscrevê-las unicamente ao universo das artes e das letras que por tanto tempo definiram sua identidade”, afirma o professor.

Segundo ele, a programação do evento tem caráter “variado e polifônico”. “Experimentar o comum pode se dar nas manifestações expressivas do hip hop, na escuta dos cantos e dos ritmos afro-brasileiros, nas práticas culinárias de uma cooperativa de cozinheiras, na troca de mudas e sementes entre os habitantes de um bairro, nas reivindicações pela despoluição de um rio, na fruição das imagens e dos sons criados pelos cineastas indígenas, na produção de imagens que registram as maneiras diversificadas de povoar o espaço urbano”, enumera Guimarães, citando atividades que serão desenvolvidas ao longo do Festival.

Conhecimento em construção

Desde sua última edição, o Festival de Inverno da UFMG rompeu com o formato das oficinas que mostravam os especialistas como detentores de um saber especializado a ser transmitido àqueles que vivem fora da comunidade universitária e convidou mestres de outros saberes para partilhar suas maneiras de conhecer e agir no mundo. Mestres das culturas indígenas, como os xamãs, e dos Reinados do Rosário, por exemplo, tornaram-se protagonistas já na edição de 2012.

“Deslocamos as atividades na direção de uma experiência mais participativa, voltada para a construção conjunta do conhecimento. Se antes havia a ideia de transmissão, agora o Festival é calcado na experiência, no encontro, na partilha, na descoberta de coisas proporcionadas por uma exposição à alteridade – de outros mundos, saberes e sujeitos”, argumenta o coordenador-geral.

Nessa linha, o Festival tomou emprestada a noção de “coletivo” empregada por grupos artísticos que atuam de forma colaborativa. Serão quatro grandes coletivos: Margens e arredores da cidade; Cantares afro-brasileiros; Cineastas indígenas; e Imagens do bem comum: territórios e retratos. Eles reunirão 20 atividades – todas gratuitas – na parte da manhã, entre 9h e 13h, de segunda a sexta. Já na manhã de sábado, dia 27, os participantes serão convidados para uma Caminhada pelas margens do Rio Grande. O domingo, dia 28, começa com o Cortejo das Guardas do Rosário, e um desfile de blocos de carnaval encerrá o Festival.

O evento também contará com as chamadas Itinerâncias – sete ao todo –, sempre no início da tarde, a partir de 15h. César Guimarães explica que elas são resultado de uma proposta de condensação e descentralização da programação: “Queremos que o Festival alcance outros espaços, que ele não fique circunscrito ao centro histórico de Diamantina, tradicionalmente reservado às manifestações artísticas destinadas a um público já formado. Desejamos que outras pessoas venham experimentar o Festival”, afirma o professor. Com as Itinerâncias, as atividades do Festival serão levadas cada dia a um bairro de Diamantina. “Apesar dessa mudança no formato da programação em relação ao ano passado, não abrimos mão do método que inventamos”, avalia César Guimarães.

Na esteira das Itinerâncias, haverá apresentações artísticas – duas por noite, em diferentes espaços da cidade, de segunda a sábado, às 20 e 21h. E essa programação também vai se dar de forma descentralizada, para atingir toda a comunidade. Guimarães conta que as atrações noturnas poderão, inclusive, acontecer nos próprios locais que receberem a Itinerância. “Na quarta-feira, por exemplo, o caminhão seguirá para o bairro Bela Vista, onde fica o terreiro de Mamãe Oxum. A Itinerância chegará ao bairro às três horas da tarde. A partir de então, serão realizadas várias atividades ligadas ao candomblé, e tudo terminará em uma grande festa, ali mesmo, na vizinhança do terreiro, no cair da noite”, descreve.

Ricardo Ferraz Bastos
Atividade realizada na última edição do Festival: protagonismo exercido por detentores de outros saberes
Atividade realizada na última edição do Festival: protagonismo exercido por detentores de outros saberes

Aqui, a tarifa já é zero

As manifestações que tomaram as ruas do Brasil em junho último iniciaram-se em São Paulo com a bandeira do “passe livre”, que sintetiza a reivindicação por um transporte público e gratuito. Se no Brasil como um todo essa proposta ainda não vingou, o Festival de Inverno da UFMG encampa e põe em prática o passe livre desde sua edição de 2012 por meio do Tarifa Zero, sistema de transporte que garante acesso gratuito a todos os eventos e atividades. “São ônibus da UFMG e da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) que circulam em trajetos estratégicos, de forma a propiciar a chegada a todos os locais de atividades”, diz César Guimarães.

O sistema procura dar solução eficaz aos desafios de mobilidade trazidos por um evento desse porte, além de oferecer uma experiência – em pequena escala – de modelo de mobilidade urbana fundado em lógica pública e democrática. A ideia partiu de professores da Escola de Arquitetura da UFMG. “Essa foi outra mudança muito positiva para o evento, já que seu novo desenho contou com a participação decisiva de professores vindos de outros domínios, como a etnomusicologia, a antropologia, a geografia, a arquitetura, a comunicação e o cinema”, enumera.

O martírio das imagens

Nas tardes de segunda e terça-feira, dias 22 e 23, haverá a exibição de dois documentários: Martírio, de Vincent Carelli, e A cidade é uma só?, de Adirley Queiroz. O filme de Carelli joga luz sobre os crimes cometidos contra os índios – entre os quais os Guarani-Kaiowá, os Terena e os Munduruku – no Mato Grosso do Sul e no Pará. A produção será exibida na segunda, às 18h, na Escola Estadual Gabriela Neves, no bairro da Palha.

O drama dos Guarani-Kaiowá, que no fim do ano passado desencadeou ampla inserção de sobrenomes “Guarani-Kaiowá” no Facebook como forma de apoio à etnia, alcançou a UFMG ainda no primeiro semestre de 2012, justamente a partir do Festival de Inverno daquele ano. No dia 19 de abril, Dia do Índio, o gramado da Reitoria, no campus Pampulha, recebeu um piquenique organizado pelos curadores do evento e por alunos da licenciatura indígena da UFMG.

“Aquela situação tocou a todos, e o Festival acabou se tornando palco de muitos debates em torno da questão indígena no nosso país. O assunto alcançou grande repercussão e se disseminou”, recorda César Guimarães. As discussões resultaram ainda no seminário A cosmociência dos Guarani, Mbya e Kaiowa, realizado em dezembro na UFMG, com a parceria do Museu do Índio, que estará novamente presente no Festival deste ano.

Já A cidade é uma só?, de Adirley Queiroz, será exibido no bairro Cidade Nova, na terça-feira. O documentário propõe reflexão sobre o processo de exclusão territorial e social imposto a uma considerável parcela da população do Distrito Federal a partir da fundação e desenvolvimento de Brasília. O diretor Adirley Queiroz conta que ele próprio é um integrante da primeira geração “pós-aborto territorial” da capital federal. O cineasta mora em Ceilândia, cidade-satélite do Distrito Federal, há mais de 30 anos, e seus pais integram esse contingente expulso. “Brasília começa a sua história tornando invisíveis aqueles que a construíram”, denuncia Queiroz.