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Nº 1863 - Ano 40
12.05.2014
Itamar Rigueira Jr.
A realização da Copa do Mundo de futebol no Brasil traz à tona questões que transcendem o esporte ou o espetáculo. Por exemplo, um megaevento como esse é capaz de mudar o ordenamento jurídico do país. A banalização do estado de exceção nas democracias é um dos temas de seminário que será realizado entre 13 e 15 de maio, na Faculdade de Direito. E é tratada nesta entrevista pelo professor de Filosofia do Direito Andityas Matos, coordenador do grupo de pesquisa O Estado de Exceção no Brasil Contemporâneo.
Quando se fala em estado de exceção, se pensa em ditadura. Mas esse dualismo é superficial, já que a exceção hoje é estratégia das próprias democracias contemporâneas. O Brasil é bom exemplo. Ainda que aqui se adotem procedimentos constitucionais, existem espaços e momentos em que estruturas autoritárias, sobreviventes de ditaduras ou que têm a ver com estruturas econômicas autoritárias, se infiltram no Estado. E determinam decisões que em nada se coadunam com a ideia de soberania popular e de um Estado democrático e igualitário. O governo brasileiro – e não se trata de crítica a qualquer partido ou gestão em particular – valoriza pouco a participação popular e espaços de decisão não oficiais. Por isso, entre outras razões, megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas têm potencial muito grande de trazer à tona situações de exceção.
A Copa do Mundo no Brasil, a mais cara da história, exige gastos de 33 bilhões de dólares. E isso sem qualquer consulta efetiva à sociedade. Será que o povo brasileiro, por mais que ame futebol, escolheria, se consultado, aplicar todo esse dinheiro num evento que vai durar um mês? Um Estado supostamente democrático abriga um evento com a finalidade clara de angariar lucros para uma entidade privada e seus parceiros comerciais sob o simbolismo de que o Brasil é o país do futebol. Para tanto são tomadas várias medidas que vulneram o ordenamento jurídico brasileiro. Esse é o movimento da exceção, com a suspensão da legalidade em função do interesse econômico. Por exemplo: a Lei Geral da Copa suspende normas que protegem o idoso, a criança e o adolescente.
É real a possibilidade de que se aprove a tipificação para o crime de “terrorismo”. Trata-se de tipo penal aberto, sem delimitadores conceituais claros. Essa nova figura pode ser usada politicamente para demonizar e amedrontar movimentos sociais. Outro exemplo: as normas que suspendem em certas situações a lei de licitações devem continuar no ordenamento. Percebe-se que já não funciona a ideia dos juristas do início do século 20 de que a exceção salvaguardaria uma situação de fato para depois se voltar à normalidade.
O poder político-econômico já não adota atitudes visivelmente autoritárias. Ao contrário, vai conquistando espaços em que a legalidade normal não se aplica, sempre com a ajuda de outros poderes, como a mídia, que cria a imagem de uma Copa pacificada, e não de uma situação de exceção.
Na doutrina tradicional do Direito Constitucional há pré-requisitos para a decretação do estado de exceção. Se o Estado sofre ameaça grave e urgente, os trâmites decisórios normais precisam ser suspensos. Surgiu na república romana a noção de que em alguns momentos a normalidade não consegue governar. Mas, no mundo contemporâneo, como lembra o [filósofo italiano] Giorgio Agamben, o estado de exceção declarado formalmente segundo regras constitucionais deixou de existir. Somos governados constantemente sob argumentos da urgência e emergência, sem qualquer controle popular. Saindo da Copa: decisões concretas de política econômica no Brasil, como em outros países, raramente são tomadas pelo Parlamento, e sim por órgãos técnicos, geralmente fechados em si, como o Banco Central.
Carl Schmitt e Walter Benjamin são autores clássicos. Para a jornalista canadense Naomi Klein, o capitalismo se aproveita da comoção gerada pelos desastres naturais e artificiais para se desenvolver. O geógrafo David Harvey, por sua vez, mostra de que forma o capitalismo trata a cidade como mercadoria, e não mais como simples espaço de troca, como dita o pensamento econômico clássico. Antonio Negri e Michael Hardt, no livro Multidão, segundo de uma trilogia, propõem contra a exceção permanente a criação de um novo sujeito político, que não seja mais o povo. Eles defendem que o povo soberano é uma ideologia homogeneizante e não uma vivência. Ao contrário, as pessoas que integram a multidão são diferentes entre si, mantendo suas singularidades, mas tendo como projeto comum o aprofundamento da democracia. Nessa linha, nosso grupo de pesquisa tenta repensar conceitos que não funcionam mais, mas continuam criando subjetividades submissas, tais como soberania e representação política. Há uma crise de legitimidade do mundo ocidental, e o estado de exceção é sintoma disso.
Temos que trabalhar em várias frentes. Em primeiro lugar, as resistências têm que se dar em rede, já que é assim que se organiza o poder global. Movimentos como o Occupy, nos Estados Unidos, os Indignados espanhóis e as manifestações de 2013, no Brasil, são horizontais, o que é positivo, assim como o fato de não terem uma única bandeira, o que dificulta sua cooptação pelo poder político. Cada vez mais ganha força a ideia de diminuir a distância entre governantes e governados, questionando-se assim estruturas de poder arcaicas que paradoxalmente escondem uma nova forma de poder, que é a econômico-financeira.