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Nº 1869 - Ano 40
28.07.2014

Encarte

opiniao

A política segundo João Ubaldo Ribeiro

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Pilares greco-romanos sustentam, no Ocidente, as concepções primordiais de política. Por política, entende-se o cuidado com a polis, a cidade, envolvendo a garantia e o cumprimento de direitos e deveres relacionados à orientação normativa dos comportamentos públicos e privados. Em termos romanos, a palavra latina urbs denomina a cidade e determina o termo “urbano”, com destaque para o seu aparato material. Assim, enquanto os gregos projetaram a política como atividade zeladora que responde pela vida espiritual da cidade, os romanos, por seu turno, privilegiaram a política como meio viabilizador da infraestrutura dos espaços urbanos, visando à formação patrimonialista. Considerando a mentalidade política em vigor, as ações dirigentes da cidadania moderna foram promovidas pelos habitantes dos burgos, os burgueses. Estes, atentos à tradição política greco-romana, agruparam o cuidado espiritual e o material do burgo sob o nome de “política”. Logo, o discurso classista, típico da vida moderna, se sobrepôs a essa dualidade, mas não a anulou.

João Ubaldo Ribeiro, falecido no último dia 18, deixou importante obra sobre a arte política e suas artimanhas, objetivando conscientizar o público acerca dos valores gerenciais que se projetam para garantir a conquista e a preservação do poder mandatário. O livro escrito pelo intelectual baiano se chama Política: quem manda, por que manda, como manda (1998). A intencionalidade discursiva do autor apresenta semelhanças com os propósitos expressos por Nicolau Maquiavel, em O príncipe (1513), já que ambos pretendem contar ao público como funciona a mente dos poderosos. João Ubaldo Ribeiro mostra que a cultura política, como prática administrativa, ainda se encontra subjugada pelos interesses particularistas de gestão. Fazer política significa, em termos mais pragmáticos, garantir a governabilidade administrativa e seu sucesso executivo: “a Política passa a ser entendida como um processo por meio do qual interesses são transformados em objetivos, e estes são conduzidos à formulação e à tomada de decisões efetivas, decisões que ‘vinguem’”. João Ubaldo Ribeiro sintetiza a política como o poder de direção de uma classe política no governo do destino social: “para trocar em miúdos tudo isso, pode-se afirmar que a Política tem a ver com quem manda, por que manda, como manda. Afinal, mandar é decidir, é conseguir aquiescência, apoio ou até submissão. Mas é também persuadir”.

O escritor faz questão de ressaltar que fazer política difere do triste hábito que a contamina, referindo-se às promessas eleitoreiras e aos discursos esvaziados de realidade transformadora. João Ubaldo também demonstra preocupação com aqueles que se afugentam da preocupação com a política e destaca que essa atitude enfraquece o poderio popular e favorece os mandatários conservadores que utilizam o poder público para fins privados e corporativos. Quanto mais se desdenha da política, mais a corrupção e a apatia se agigantam. Sobre tais aspectos, salienta o intelectual baiano:
“A Política não é, pois, apenas uma coisa que envolve discursos, promessas, eleições e, como se diz frequentemente, ‘muita sujeira’. Não é uma coisa distinta de nós. É a condução da nossa própria existência coletiva, com reflexos imediatos sobre nossa existência individual, nossa prosperidade ou pobreza, nossa educação ou falta de educação, nossa felicidade ou infelicidade. É claro que uma pessoa pode não se preocupar com a Política e os políticos. Trata-se de uma escolha pessoal perfeitamente respeitável. Quando se age assim, no entanto, deve-se ter consciência das implicações, pois se trata de uma atitude de passividade que sempre favorece a quem, em dado momento, está numa situação de mando dentro da sociedade”.

Considerando o foco do pensamento de João Ubaldo Ribeiro – isto é, a política distorcida como poder de mando –, o autor pretende chamar a atenção para a nossa principal ferida em matéria de gestão pública: a cultura da dominação. Insistimos, ainda, em formatos verticais de expressão do poder. Com isso, forma-se, na sociedade, uma mentalidade cultural subserviente, o que prejudica o compromisso da política com a construção de um mundo melhor e igualitário. Para revertermos esse quadro, João Ubaldo Ribeiro destaca, com bastante pertinência, o estilo ideal de comportamento político que deve ser estimulado democraticamente:
“A dominação mais forte e mais difícil de vencer (até mesmo porque é comum que não a queiramos vencer) é a que se faz pela cabeça. Quando a nossa cabeça não tem autonomia, quando, mesmo que não notemos, pensam por nós, aí estamos dominados, seja pelo esquema interno a nosso próprio país, seja por economias e culturas que o colonizam, seja por ambos — como geralmente é o caso. A resistência contra essa dominação, quando ela realmente nos toma conta da cabeça, é muito difícil, inclusive porque pensamos que somos nós que estamos a decidir, em vez de um esquema pré-fabricado que internalizamos. Isto se percebe bem em situações simples, como quando concluímos que a ‘realização’ plena de um jovem praticando o esporte da moda não é realização plena coisa nenhuma, mas a consequência prevista de um processo de marketing em que ele foi colhido. Quando, entretanto, esse processo é mais fundo, a ponto de o confundirmos com nossa própria identidade, nossa maneira de ser — aí a luta é mais difícil, e só pela consciência política e pela produção cultural livre e autônoma conseguiremos, coletivamente, vencer”.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.