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Nº 1869 - Ano 40
28.07.2014

Encarte

Eu quero uma vida no campo

Licenciatura amplia horizontes de educadores do meio rural

Ana Rita Araújo

No lugar das antigas lideranças de movimentos sociais que compuseram as primeiras turmas, alunos mais jovens têm buscado a Licenciatura do Campo (Lecampo) da UFMG, que neste ano completa uma década de formação de educadores para atuar em comunidades rurais. O próprio ambiente de origem dos estudantes tem mudado, com forte presença do estilo de vida e de questões que envolvem o processo de urbanização do país.

“Procuramos passar para essa juventude o espírito de que é preciso pensar no coletivo, o que pautou a luta dos movimentos sociais por esse tipo de formação acadêmica”, comenta a professora Maria de Fátima Almeida Martins, do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Faculdade de Educação (FaE). Otimista com relação ao futuro da educação do campo, a coordenadora afirma que o objetivo do curso é empoderar e não apenas manter parcelas da população na zona rural. “A ideia não é condenar essas pessoas a ficar onde estão, mas que elas tenham inclusive a opção de lá permanecer”, enfatiza.

Pioneira no país e modelo para iniciativas similares em diversos estados brasileiros, a Lecampo oferece quatro cursos: Ciências da Vida e da Natureza; Ciências Sociais e Humanidades; Língua, Artes e Literatura; e Matemática. A formatura, neste mês, de alunos licenciados para atuar como educadores do campo na área de Ciências da Vida e da Natureza marca nova etapa no programa. “Esta turma entrou em 2009, quando a Lecampo tornou-se curso regular da UFMG, no âmbito do Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni)”, explica a professora.

As duas primeiras turmas atenderam, a partir de 2005, a projetos específicos, em parceria com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sindicatos, movimento de pequenos agricultores e escolas de famílias agrícolas. Fátima Martins avalia que, ao se tornar pioneira na implantação desse tipo de curso, a UFMG escolheu trazer para a sua comunidade questões que exigem intervenções não imediatistas. “A Universidade tem o compromisso de socializar conhecimento e de mostrar que é possível mudar a escola do campo, não pelo outro, mas pelos sujeitos que lá estão.”

Sindicatos

Embora mais novos, os atuais alunos da Lecampo, em sua maioria, têm como referência os sindicatos de trabalhadores rurais, que os estimulam a buscar formação acadêmica. É o caso de Naiane Dias Nunes, 24 anos, que desde os 16 participa do movimento sindical. Vinda da zona rural do município de Jordânia, a 800 quilômetros de Belo Horizonte, ela é aluna do curso com ênfase em Ciências Sociais e Humanidades. “Tem tudo a ver comigo”, enfatiza ela, que tem planos de atuar em sala de aula e continuar no movimento social.

Para Fátima Martins, contudo, a permanência no campo só ocorre se houver qualidade de vida. Por isso, em sua opinião, cabe à Universidade ter sensibilidade para oferecer aos alunos da Lecampo condições de lidar com os contextos adversos de sua realidade, tornando-os capazes de decidir se querem sair ou ficar em seu local de origem. “Esse é um dos nossos grandes desafios”, aponta. Segundo ela, muitos dos egressos da licenciatura já atuavam como professores, embora tivessem apenas nível médio, enquanto outros são ativos nos movimentos sociais, dos quais se originou a luta pela formação de educadores do campo. “Eles já vinham, há anos, denunciando a experiência negativa de tanto sofrimento, como o deslocamento diário das crianças por grandes distâncias para alcançar uma escola”, relembra.

Essa situação vem mudando, constata a professora. “Estive, por exemplo, em Araçuaí. Um sertão daquele e de repente, no meio do Vale do Jequitinhonha, encontram-se uma comunidade toda colorida e uma escola belíssima, com uma condição fantástica de infraestrutura e atividades integrais para os alunos”, relata. Em sua opinião, a mudança é fruto de uma conjunção de fatores, como a luta dos movimentos sociais e o envolvimento de docentes das universidades, que resultou no Programa Nacional de Educação no Campo (Pronacampo), do qual a UFMG participa como integrante de grupos de trabalho.

“A licenciatura está dentro desse programa maior, lançado em maio de 2012, pelo Governo Federal”, esclarece Fátima Martins. “Esse programa tem ajudado muito na manutenção e na melhoria das condições da escola do campo”, informa. Integrante do grupo de trabalho nacional de educação no campo, do Ministério da Educação, Fátima Martins explica que as universidades que abriram cursos na área são acompanhadas. Desde 2012 foram criadas 42 licenciaturas para formação de educadores do campo em 32 instituições, e cada uma recebeu 15 vagas de docentes, específicas para esse curso. “É uma política que está se consolidando”, enfatiza.

Foca Lisboa
Fátima Martins: preparação para lidar com contextos adversos
Fátima Martins: preparação para lidar com contextos adversos

Alternância

Embora seja curso regular da UFMG, a Lecampo tem dinâmica própria de funcionamento. No regime de alternância, oferece atividades nas instalações da Universidade (Tempo-escola) e em cidades-polo, onde se reúnem regularmente os alunos oriundos de diversos municípios da região (Tempo-comunidade). Fátima Martins explica que tal dinâmica de escolarização, desenvolvida na França, se constitui em movimento de aprendizagem na continuidade e descontinuidade do processo escolar. “A alternância implica o imbricamento da dinâmica da Universidade com a da comunidade”, ressalta a coordenadora. O Tempo-escola ocorre de janeiro a fevereiro e em julho, enquanto o Tempo-comunidade é realizado em maio e em setembro, em diferentes locais que possam congregar os participantes do curso.

Quando estão em Belo Horizonte, os 140 alunos da licenciatura hospedam-se no Centro Vicentino, no bairro Rio Branco, região de Venda Nova, e recebem bolsa para deslocamento e hospedagem. “No Tempo-comunidade, a logística é muito maior, porque a geografia da Lecampo abrange todo o estado de Minas Gerais, havendo concentração no Norte e Vale do Jequitinhonha. Os encontros são realizados em cidades estratégicas. O próximo encontro, em setembro, será em Araçuaí”, conta a professora.

As especificidades do curso nem sempre encontram ressonância nas estruturas da Universidade. “Não é fácil fazer alternância utilizando o sistema acadêmico da UFMG, plataforma informatizada que lida com disciplinas cuja oferta segue outro modelo”, exemplifica a coordenadora. Ela destaca que esses alunos trouxeram “uma forma própria de dialogar com a organicidade da Universidade”.

Outra característica específica da Lecampo é a sistemática de decisão coletiva nos assuntos que envolvem cada turma de alunos, seguindo modelo de organicidade do Movimento Sem Terra (MST). “Diferentemente de qualquer outro curso na UFMG, eles são organizados por turma. Para permanecer cinco semanas no mesmo espaço, com mais de cem pessoas, é preciso dialogar o tempo todo e ter normas que definam a convivência”, justifica Fátima Martins.

Retorno acadêmico

A educação do campo tem sido objeto de dezenas de produções acadêmicas na UFMG, desde teses e dissertações até livros, como a coleção Caminhos da Educação do Campo, publicada pela editora Autêntica, composta por sete volumes elaborados por professores da Universidade. Pesquisas desenvolvidas no Programa de Pós-graduação em Educação Conhecimento e Inclusão Social, da Faculdade de Educação, abordam temas como alternância, formação de professor, territorialidade camponesa, organização da escola e aspectos da própria história da Lecampo, com análises dos princípios político-pedagógicos desse projeto de formação. “Temos quase uma centena de trabalhos com temáticas derivadas da educação do campo, o que é muito importante para garantir o lugar na universidade como espaço de formação, mas também de investigação”, ressalta Fátima Martins.

Convidado a fazer uma leitura crítica da Lecampo, o professor Paulo Afrânio Santana, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, avalia que a construção do curso, em articulação com os movimentos sociais, se traduz na produção científico-acadêmica dos seus docentes e discentes. Em sua opinião, essa é “uma contribuição ímpar para a sistematização de propostas pedagógicas para populações campesinas, assim como para a construção e a consolidação das políticas públicas no âmbito da educação do campo”.

Para o professor, além de uma proposta pedagógica, esse tipo de formação “é também um resgate histórico dos modos de vida do campo e a construção de oportunidades que favoreçam a permanência dessas populações nos locais onde vivem”. Nesse contexto, destaca Paulo Afrânio Santana, a educação do campo se alia a outras lutas – por terra, moradia, democracia, diversidade, educação de qualidade e pela valorização do professor.

Em sua opinião, o papel dos cursos pilotos na construção dos marcos referenciais e das políticas públicas para a educação do campo foi de extrema importância e, embora se tenha alcançado avanços significativos, há muito ainda a ser conquistado. “Garantir o acesso à educação superior é uma etapa, mas a universidade deve avançar na formulação de ações que influenciem a sociedade em geral, para que a educação do campo atinja os seus objetivos”, observa.