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Nº 1870 - Ano 40
04.08.2014


Pacto pela inclusão

Por meio de medidas como a resolução que proíbe o trote, UFMG avança na construção de um ambiente de respeito aos direitos humanos e às diferenças

Ana Rita Araújo

A proibição de qualquer forma de trote estudantil, a instituição de três comissões para discutir direitos humanos e a introdução de mudanças no desenho institucional para adaptar a estrutura da Administração Central a novas demandas expressam a decisão do atual Reitorado de avançar na construção de um ambiente em que prevaleça a solidariedade social e o respeito à vida. “Estamos focalizando a temática global dos direitos humanos como um dos primeiros atos dessa gestão”, enfatiza a vice-reitora Sandra Goulart Almeida.

Aprovada pelo Conselho Universitário no fim de maio, a resolução que proíbe o trote integra conjunto de medidas que materializa, segundo a vice-reitora, propostas da atual gestão para “uma universidade mais inclusiva, aberta à diversidade e com respeito às diferenças”. Segundo ela, a discussão pelo fim do trote teve início no fim da gestão passada, sendo agora retomada e ampliada.

Para o professor Tarcísio Vago, assessor especial para Assuntos Estudantis, a decisão contida na Resolução 06/2014 era inadiável. “Aquilo que não cabe nas relações humanas não cabe na Universidade”, pondera. Opinião semelhante tem a professora Cláudia Mayorga, do Departamento de Psicologia da Fafich: “A universidade, em seu conceito, é uma instituição que não pode ser conivente com situações de homofobia, racismo, sexismo e violência”.

Atual pró-reitora adjunta de Extensão e coordenadora do Núcleo Conexões de Saberes, Cláudia explica que o trote sobre os novos estudantes produz o efeito de acuá-los e levá-los a se sentir menos pertencentes a um contexto. Para a professora, não faz sentido continuar com esse tipo de prática, sobretudo em um momento de democratização do acesso, criação de novos cursos e implantação da lei de cotas – mecanismos que trazem para a universidade sujeitos historicamente sub-representados. “Nosso papel é facilitar sua integração, não criar muros para que eles tenham que provar que são capazes de estar aqui”, afirma.

A resolução (publicada na página 6) traz ampla definição de trote, que inclui a prática de atividades que "envolvam ou incitem agressões físicas, psicológicas ou morais" ou evidenciem "qualquer forma de opressão, preconceito ou discriminação (racismo, machismo, homofobia, lesbofobia, transfobia, entre outros) e reforcem situações de falsa hierarquia entre veteranos e calouros, homens e mulheres, cursos e áreas, desrespeitando a diversidade e a diferença".

Para o professor Marco Aurélio Máximo Prado, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania LGBT, é importante que, pela primeira vez, a UFMG aborde temas como homofobia, racismos e sexismos. “É uma forma de deixar bastante claro para todos que constituem o ethos universitário que aqui são inaceitáveis quaisquer tipos de violências, sejam físicas, simbólicas ou morais”, afirma.

A estudante Luciléia Miranda, coordenadora geral do Diretório Central dos Estudantes (DCE), considera “uma batalha ganha” a aprovação da medida – em especial, com a inclusão de termos específicos que traduzem opressão a determinados grupos. Ela destaca que, além das opressões que os diversos sujeitos sofrem na sociedade e são reproduzidas na universidade, “o trote em si é uma hierarquização, pois põe um estudante como superior a outro, o que não faz sentido em uma instituição democrática que preza pelo respeito à diversidade”.

Mobilização

Apesar de comemorada, a Resolução 06/2014 não basta para abolir a prática do trote. “Para além da proibição, precisamos mobilizar a comunidade acadêmica para um pacto pelos direitos humanos e pela não desqualificação de qualquer sujeito que ingresse ou interaja com a Universidade”, defende Cláudia Mayorga. Para fortalecer uma cultura contra o trote, ela sugere ações de capacitação continuada, com a abertura de espaços de debate que envolvam núcleos e laboratórios da UFMG que trabalham com essas temáticas.

A diretora de Governança Informacional da UFMG, Maria Aparecida Moura, avalia que o principal ganho com a medida é a posição institucional “contra todo e qualquer tipo de violência”. No entanto, vê o trote como “a ponta de um iceberg”. “Temos que aproveitar a oportunidade, pois nossa responsabilidade é formar profissionais éticos. Não se trata apenas de coibir. Mais do que incutir o medo da punição, é preciso fortalecer a compreensão e o respeito ao direito do outro”, observa.

Foca Lisboa
Maria Aparecida Moura: fortalecer o respeito ao direito do outro
Maria Aparecida Moura: fortalecer o respeito ao direito do outro

Tarcísio Vago lamenta que ainda seja necessário adotar medidas oficiais para orientar a convivência respeitosa. “Uma universidade só faz sentido se nos levar a lugares inusitados, inéditos. E no Brasil, uma convivência sem preconceitos ainda é um lugar não visitado. Estamos a caminho, muito já foi feito, mas precisamos avançar muito mais”, afirma o professor, que preside a comissão que está elaborando a proposta de criação da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis. Defensor de um trabalho permanente de formação, ele questiona a finalidade de uma instituição de ensino que “devolve as pessoas para a sociedade do mesmo jeito que as recebeu”. E completa: “Temos o dever de primar pela construção de vivências humanas e relações dignas também com o planeta que habitamos”.

Mecanismos

A resolução 06/2014 aplica-se “a discente que executar ou participar do trote e a discente e servidor da UFMG que instigar a prática do trote, dela participar de maneira omissa e conivente”. Também prevê penalidades de advertência, suspensão ou desligamento, após processo disciplinar, “assegurados o contraditório e a ampla defesa”. Segundo a vice-reitora Sandra Goulart Almeida, um dos mecanismos para garantir a aplicação da resolução é a Ouvidoria, que está sendo reformulada para também registrar manifestações relacionadas a esse tema.

À frente dessa instância, a professora Aparecida Moura considera a Ouvidoria “um canal qualificado para ajudar a implementar a resolução que proíbe o trote”, sobretudo mediante política de comunicação mais efetiva que pretende conferir maior visibilidade ao serviço, aberto à comunidade externa e interna, por meio do telefone (31) 3409-6466 e pelo email ouvidoria@ufmg.br. Ao lado de instrumentos como a Ouvidoria, a Universidade deve, de acordo com a Resolução 06/2014, “desenvolver programa pedagógico permanente de conscientização e de combate ao trote e atividades educacionais que promovam uma convivência solidária, ética e pacífica”.

Marco Aurélio Prado acredita que medidas institucionais são necessárias por estabelecerem canais competentes para investigação dessas questões e punição dos agressores. “No entanto”, adverte, “não podemos basear apenas em resoluções toda a nossa vontade de viver em uma universidade livre de violências. Temos que agir também em prevenções, esclarecimentos e diálogos com todas as perspectivas de vida que aqui encontram guarida.”

A professora Cláudia Mayorga comenta que a resolução está em consonância com o trabalho que há anos vem sendo desenvolvido pela Universidade – com programação oficial de recepção dos calouros – e com a atuação de grupos e programas envolvidos nessas temáticas, como Ações Afirmativas, Conexões de Saberes, Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania LGBT e Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem). “Há alguns anos, esses programas têm realizado espontaneamente ações de recepção aos calouros”, avalia, lembrando a mobilização do grupo universitário pela diversidade sexual, que, em 2006 e 2007, problematizou o trote homofóbico ocorrido em algumas unidades acadêmicas. Ela informa que, para este semestre, os estudantes do Núcleo Conexões de Saberes organizaram, por meio de programa de extensão, atividades de apoio à Resolução 06/2014, incluindo a distribuição de material gráfico. “A intenção é fazer recepção nas unidades, dando as boas-vindas e reforçando a ideia de que as pessoas devem procurar órgãos institucionais, como a Ouvidoria, e também os núcleos, para obter mais informações sobre o cotidiano da Universidade”, explica Cláudia Mayorga.

O DCE também vai distribuir, pelo segundo ano consecutivo, cartilha que orienta os calouros a não aceitar opressões. Em seu texto de abertura, o material enfatiza que o calouro sempre pode dizer “não”. A estudante Luciléia Miranda comenta que, ao lado de ações pontuais como a distribuição da cartilha, o DEC defende a adoção de outras medidas educativas, como a discussão de conteúdos relacionados aos direitos humanos nas disciplinas.

Isabella Lucas
Takahashi: disciplinas sobre saberes tradicionais e relações étnico-raciais
Takahashi: disciplinas sobre saberes tradicionais e relações étnico-raciais

A ideia coincide com o trabalho que vem sendo desenvolvido pela Pró-reitoria de Graduação para ofertar um elenco de disciplinas que abordarão temas como saberes tradicionais, ações afirmativas e direitos humanos. De acordo com o pró-reitor, Ricardo Takahashi, a intenção é aproveitar o mecanismo de formação complementar previsto nas regras de flexibilização curricular para disponibilizar, aos alunos de todos os cursos, blocos temáticos de disciplinas optativas. A partir do primeiro semestre de 2015, já haveria oferta, por exemplo, de disciplinas ministradas por pessoas de comunidades tradicionais sobre suas artes, línguas e cosmogonias. Também está sendo preparada a oferta de bloco de disciplinas sobre temas associados às culturas africana e afro-descendentes e relações étnico-raciais.