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Nº 1871 - Ano 40
11.08.2014

opiniao

Educação e cidadania

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Em estado de graça, fiquei ao ouvir um estudante de Letras da Faculdade JK, Antonio Emerson Dantas, proferir sublime frase de sua própria lavra: “A educação é o sustento da cidadania”. Educação visa à formação de cidadãos livres, responsáveis, autônomos e solidários por meio do respeito aos projetos individuais de existência. Em destaque, encontra-se, portanto, a preocupação com a articulação entre os projetos individuais e coletivos, considerando a ideia de cidadania como antídoto para a confusão entre a valorização dos projetos pessoais e o primado exclusivo do individualismo, que se manifesta com força crescente no mundo contemporâneo, explica o sociólogo francês Michel Wieviorka.

O individualismo, conforme ele descreve em sua obra O novo paradigma da violência (1997), apresenta duas faces complementares e eventualmente opostas. Por um lado, o homem quer participar da modernidade, do que ela oferece, usufruir do que promete, do que mostra pelas lentes dos meios de comunicação e das solicitações de um consumo de massa cujo espetáculo está mundializado. Ele tem a intenção de consumir, ou continuar a consumir, se já o fez, e começar a fazê-lo se ainda não o pode. Por outro lado, o indivíduo quer ser reconhecido como sujeito, construir sua própria existência, não ser totalmente dependente de papéis e normas, distanciar-se deles sem ser, no entanto, obrigado a fazê-lo. Ele pretende, por exemplo, fazer escolhas que o autorizem a referir-se a uma identidade coletiva, sem estar totalmente subordinado a ela, produzir-se, e não somente reproduzir-se. Essas duas faces do individualismo não são uma novidade, e, de certa maneira, Émile Durkheim, em As formas elementares da vida religiosa (1912), a elas se refere quando distingue o indivíduo, ligado ao modo profano, e a pessoa, que a seus olhos está vinculada ao sagrado. Ainda no campo da espiritualidade, é oportuno saber que os rastafáris se referem a si mesmos como “I and I” (eu e eu). Essa forma é preferencial em relação a “nós” e usada para enfatizar a igualdade entre todas as pessoas, com base no reconhecimento de que o divino que existe em nós nos iguala aos outros. A respeito, Bob Marley, em O futuro é o começo (2013), lança luz interessante ao dizer: “Se eu posso me unir comigo mesmo e me sentir tão bem, imagine se todos nós nos uníssemos, como seria boa a sensação”. Uma possível interpretação para a citada expressão “I and I” se refere à prática do autoconhecimento, isto é, a atitude íntegra do “eu comigo”. Logo, um “eu sem mim” apontaria para uma alienação da própria interioridade. Por isso, não se pode falar propriamente em Educação se as pessoas são reduzidas aos papéis sociais que deverão desempenhar.

Para tanto, as instituições de ensino e aprendizagem precisam se tornar cada vez mais uma “escola do sujeito”, na expressão de Alain Touraine, em Podremos vivir juntos? (1997). É fundamental a percepção da existência de demandas individuais e de grupos, valorizando-se a diversidade cultural e buscando-se construir instrumentos eficazes para a comunicação intercultural. O reconhecimento do outro, no entanto, não pode prescindir do reconhecimento de si mesmo como um sujeito livre, com uma consciência autônoma e com características pessoais inconfundíveis. Na esteira da lúcida reflexão proposta por Nílson José Machado, em Educação: projetos e valores (2006), uma educação efetivamente focada no desenvolvimento da cidadania precisa atender aos seguintes propósitos: “Garantidas as qualidades anteriormente referidas – cidadania, profissionalismo, tolerância, integridade, equilíbrio –, a escola precisa centrar-se cada vez mais na transformação dos indivíduos em sujeitos, em atores sociais conscientes, em pessoas que combinem uma identidade única com uma pertinência cultural, uma liberdade de ação e um senso de responsabilidade, projetos pessoais abrangentes e um profundo engajamento como servidor público”.

Diante de tão nobre prerrogativa, faz-se necessário repensar o modelo escolar contemporâneo centrado quase que exclusivamente na formação para a produção, para o trabalho. A formação da cidadania passou a ser considerada de modo simplificado, atrofiando os interesses individuais e hipertrofiando os coletivos. Nesse sentido, alerta pertinente faz Machado: “[a escola] não pode definir seu projeto educacional tendo em vista apenas as demandas do mercado de trabalho, nem organizar-se por meio de currículos em que os objetivos disciplinares contam mais do que uma formação integral do estudante. Os fatos científicos não podem ser apresentados como se fossem independentes de valores, como se a ciência pudesse prescindir da consciência pessoal”.

Lembro, para efeito elucidativo dos fatos aqui arrolados, quão sábio foi Bob Marley, ao advertir que “o dinheiro é como a gordura que domina o coração de uma pessoa. [...] O dinheiro é uma tolice. Acredito que a única coisa que realmente importa para um homem é encontrar o modo de vida e viver de acordo com o que ele acredita. Se ele fizer isso, então tudo mais que fizer será bom”. Frutífero então é confiar que a educação para a cidadania contribui no combate à obesidade materialista, oferecendo uma dieta mais saudável à população, com base em nutrientes verdadeiramente essenciais. Assim teremos condições mais reais para atingirmos uma “sustentabilidade moral”, conforme almeja o professor Hélio Santos. A verdade como norma, a ética como bússola e a igualdade de oportunidades são fatores imprescindíveis para viabilizar o nobre ideal educativo: “Fazer o melhor da melhor maneira”.

* Professor da Faculdade JK-Samambaia, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG