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Nº 1872 - Ano 40
18.08.2014

opiniao

Matemágica*

Marcos Fabrício Lopes da Silva**

Percebo o valor da matemática em pessoas que se dedicam a transformar números anônimos em números assumidos. Noto na doce rotina do casal de matemáticos Rodolfo Monteiro e Adriana Maira um tipo de acerto de contas diferente do realizado costumeiramente. O troco não importa. Interessa a eles proporcionar a virtude da troca. Só ela é capaz de sustentar a ordem dos fatores que qualifica o produzido em vida. Para homenageá-los, escrevi o poema A matemática e o matemático. Eis os versos: “a matemática e o matemático/foram resolver alguns probleminhas/e encontraram algumas soluções/depois de muito calcular/eles se deram por satisfeitos/assim como dois e dois são quatro/somaram esforços/subtraíram incógnitas/multiplicaram os resultados/e dividiram tudo/pro conjunto não ficar vazio”. Parece-me que o elemento motivador da matemática se encontra justamente nas sábias palavras do filósofo-jogador Dadá Maravilha: “não me venham com a problemática que eu tenho a solucionática”. É admirável o empenho do matemático para resolver problemas e buscar soluções. Essa desenvoltura numérica, no sentido de tentar mensurar a dinâmica do mundo, me faz lembrar a distinção entre exatidão e precisão, feita por um grande amigo, o físico Adriano Márcio dos Santos. Quem se dedica aos cálculos, de acordo com ele, tem como horizonte a exatidão, o ideal. Para buscá-la, é necessário trilhar um árduo caminho em busca de medidas criteriosas. São elas que conferem precisão ao senso quantitativo disposto para viabilizar a vida em plenitude.

Machado de Assis, em crônica de 15/08/1876, se posiciona como admirador da transparência quantitativa: “publicou-se há dias o recenseamento do Império, do qual se colige que 70% da nossa população não sabem ler. Gosto dos algarismos, porque não são de meias medidas nem de metáforas. (...) São sinceros, francos, ingênuos. As letras fizeram-se para frases; o algarismo não tem frases, nem retórica”. Assim, Machado desmitifica a noção de opinião pública como fenômeno que abarca, sem distinção, a pluralidade ideológica existente na sociedade. Diz o cronista: “as instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho uma reforma no estilo político. Não se deve dizer: ‘consultar a nação, representantes da nação, os poderes da nação’; mas – ‘consultar os 30%, representantes dos 30%, poderes dos 30%. A opinião pública é uma metáfora sem base; há só a opinião dos 30%”. Talvez por isso a matemática seja tão temida, já que ela preza pela cartilha do explícito. Tudo na ponta do lápis. Não tem faz-de-conta. Quando viramos as costas para os números, os recursos não contabilizados entram em cena para a falência da ética. A educação matemática tem como linguagem o oferecimento de exercícios numéricos que nos ajudam a separar melhor o joio do trigo, evitando o abuso retórico que encobre as entrelinhas da vida.

Notáveis escritores da literatura periférica, Ferréz e GOG, respectivamente, em Cronista de um tempo ruim (2009) e A rima denuncia (2010), nos contam o prejuízo arcado pelos mais necessitados, quando as contas não batem, por conta de dinheiro desviado de sua missão social: beneficiar a qualidade de vida de todos. Em Matemática de favela, Ferréz estampa o que se encontra alojado em números bárbaros: “Então saí da fila e fui pra faculdade, aprendi rapidão a fazer conta: 10 conto no bolso, um sorriso no rosto, 10 segundos depois, o nariz cheio de pó de arroz de novo. Contei 5 querendo cheirar a tristeza do bairro inteiro, mais 1 foi fumando a dor da desunião da sua família no bueiro, menos 3 que foram beber a saudade daquela linda menina cega, que gostava do ladrão e engravidou na cela, e conheço 238 que perderam alguém que admirava, mais 111 que pagaram o preço de ver a vida sendo tirada. A matemática sádica prossegue, hipócrita, tá na minha memória; de 4 em 4, saí do castelo pra sugar a nossa história, incalculável é ver político vampiro”. Perde-se a confiança nos números, porque quem os manipula de maneira inescrupulosa se torna especialista em “ver a nossa conta subtraída”. No mesmo sentido, GOG, em Matemática na prática, reflete sobre os efeitos do sadismo numérico: “Subtração feita de forma trágica./Onde a divisão é o resultado,/E a adição são os/Problemas multiplicados”.

Existe a matemática sádica para tristeza de muitos. Seu estrago é a promoção de conjuntos vazios, resultantes de uma equação mal resolvida. O romancista Ary Quintela confidenciou certa vez que “a matemática nos países subdesenvolvidos é diferente. Aqui no Brasil, por exemplo, dois e dois são cinco”. Como licença poética e artística, contemplar o inexato faz bem à saúde. Porém é prejudicial a prática do inexato como malabarismo contábil para capitalizar os lucros e socializar os prejuízos. Enquanto assistíamos ao telejornal, com ar irônico, perguntei ao meu pai e comerciante de ofício, Marco Antonio Silva: “O senhor acredita que o Brasil é a sexta economia do mundo?”. Ele me disse: “Não, meu filho. O Brasil é a primeira economia do mundo. O problema é a corrupção que não deixa a gente crescer”. Para sair dessa sinuca de bico crônica, devemos convocar a matemática sadia. Aquela capaz de mostrar que dividir é a operação fundamental da vida. Nela, multiplicam-se alegrias e subtraem-se tristezas. Todos somam, isto é, fazem a diferença positiva. Eis o encanto da “matemágica”, eternizada na voz marcante de Beto Guedes, em O sal da terra (1981): “Vamos precisar de todo mundo/Um mais um é sempre mais que dois/Pra melhor juntar as nossas forças/É só repartir melhor o pão/Recriar o paraíso agora/Para merecer quem vem depois...”

*Esta crônica também pode ser interpretada como uma homenagem ao pesquisador brasileiro Artur Avila, premiado na semana passada com a Medalha Fields, o Nobel da Matemática 

** Professor da Faculdade JK-Samambaia, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG