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Nº 1887 - Ano 41
01.12.2014

Encarte

“O livro em papel ainda
não está fadado à morte”

Carla Pedrosa*

O advento do livro impresso no século 15 não foi capaz, na época, de acabar com o manuscrito, desmentindo a profecia dos copistas. Lastreado por esse exemplo histórico, o inglês Peter Burke confia na coexistência do livro em papel com os arquivos digitais. “O impresso servirá melhor para alguns propósitos, e o digital, para outras finalidades”, afirmou Burke, em entrevista concedida ao Portal UFMG durante passagem por Belo Horizonte, onde fez a conferência de abertura do Seminário Nacional de Bibliotecas Universitárias, realizado no mês passado.

Na entrevista, Burke, autor de duas obras seminais sobre a história social do conhecimento, também falou sobre o papel dos bibliotecários, elogiou o perfil colaborativo da Wikipédia e defendeu a preservação do sábio, espécie de intelectual que considera “em extinção”.

Qual o papel dos bibliotecários na história do conhecimento?

Uma importante função intelectual dos bibliotecários é a classificação dos livros. Estamos vivendo na era da chamada “explosão do conhecimento”, que significa expansão, mas também fragmentação. Precisamos de profissionais da informação que reordenem o “todo” e relacionem um tipo de conhecimento aos outros, classificando-os. E bibliotecários, junto com outros acadêmicos, têm papel importante nesse processo.

Como vislumbra o futuro das bibliotecas e dos livros impressos nesse contexto de fragmentação e inovação tecnológica?

Acredito na coexistência do livro impresso – até mesmo dos jornais e revistas em papel – com os arquivos digitais. A situação atual me remete ao século 15, quando a imprensa foi inventada. Os copistas acreditavam que os livros impressos eliminariam os manuscritos, e isso não aconteceu. Houve uma convivência entre impresso e manuscrito, que passou a ser utilizado com o propósito da elite de manter determinados conhecimentos restritos e secretos, não permitindo que chegassem ao grande público. Acredito que haverá essa coexistência entre o livro impresso, que será melhor para alguns propósitos, e o livro digital, para outras finalidades. Portanto, o livro em papel ainda não está fadado à “morte”. Pelo menos, é o que eu espero.

Que avaliação o senhor faz da Wikipédia?

Gosto da Wikipédia por várias razões. Em primeiro lugar, porque ela possibilita uma experiência de escrita colaborativa. Gosto também do que chamo de “advertências para a saúde intelectual”, por meio de mensagens do tipo: “esse artigo pode ser melhorado” ou “não possui fontes suficientes”, que convidam os leitores a aperfeiçoá-lo. Nas enciclopédias isso não era possível. Por fim, há a vantagem de se expandir a versão virtual. As enciclopédias substituíam as informações ultrapassadas pelas mais novas. Na Wikipédia é possível, em princípio, manter tudo, porque está na “nuvem”. Para buscar informações, ela é maravilhosa e, às vezes, pode-se utilizá-la também para pesquisar. No entanto, para tal finalidade, ainda utilizamos livros impressos e os manuscritos preservados em milhares de arquivos ao redor do mundo.

E o que acha de seu verbete na Wikipédia?

Ele poderia conter mais informações, mas não há nada de errado em relação ao que foi publicado.

A sua produção científica é marcada pela interdisciplinaridade. Qual é a importância de manter esse diálogo entre diferentes saberes?

A biblioteca do Warburg Institute, localizada em Londres, pertenceu originalmente ao acadêmico alemão Aby Warburg, “explorador” de várias áreas do conhecimento. Aby transgredia sempre as fronteiras das disciplinas e estudava artes, história, antropologia etc. Isso é algo muito importante na inovação e na descoberta de conhecimentos. Essa interdisciplinaridade pode acontecer por meio da união de vários especialistas em uma conferência para trocar ideias. Isso é um começo, mas não é suficiente. Acredito ser importante manter viva uma rara espécie intelectual ameaçada de extinção: o sábio, aquele que estuda a fundo várias disciplinas. Ele é capaz de conectar diferentes assuntos melhor do que um grupo de 15 acadêmicos especialistas trocando ideias ao redor de uma mesa.

O senhor escreveu livros fundamentais sobre a história do conhecimento. Tem alguma nova obra em mente?

Estou interessado no papel dos exilados, refugiados e expatriados na história do conhecimento. É importante conhecer a experiência deles em lidar com dois sistemas de conhecimento diferentes. Pense, por exemplo, nos estudiosos judeus, que tiveram de deixar a Alemanha, em 1933, ou a Áustria, em 1938. Muitos foram para outros países europeus, como a Inglaterra. Lá, encontraram diferentes culturas de conhecimento. Um fato interessante é que o intelectual inglês, sobretudo na década de 30, tinha aversão à teoria, devido à tradição do empirismo. Já os alemães valorizavam muito esse aspecto. Em um primeiro momento, houve mal-entendidos, mas a interação desses estudiosos resultou em certa hibridização do conhecimento. Alguns estudiosos ingleses desenvolveram interesse pela teoria e vice-versa. Esse é um exemplo do impacto dos exilados, refugiados e repatriados no sistema de conhecimento do país no qual passam a morar. Ser deslocado de pátria pode não ser muito confortável, mas pode despertar insights. É isso que eu quero pesquisar para o meu novo livro.


*Jornalista do Sistema de Bibliotecas da UFMG

(Versão ampliada da entrevista está publicada em www.ufmg.br/online/arquivos/036338.shtml)