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Nº 1888 - Ano 41
08.12.2014

opiniao

A universidade e sua relação
com os povos indígenas

Maria Gorete Neto*

Desde a invasão pelos portugueses em 1500 do que se hoje denomina Brasil, os povos indígenas vêm lutando e resistindo bravamente para que seus territórios de ocupação tradicional sejam respeitados e reconhecidos. A luta pela terra significa para eles luta por vida, uma vez que a terra, considerada Mãe, é a base da existência indígena. A Constituição Federal de 1988, em seu capítulo VIII, artigo 231, reconhece aos povos indígenas o direito originário sobre as terras que ocupam e incumbe o Estado de demarcá-las e protegê-las.

Entretanto, o cumprimento do disposto na Carta Magna está aquém do esperado. Essa negligência tem sido a causa de atos de enorme violência contra os indígenas, de conflitos e de invasões de suas terras em todo o território brasileiro nos dias atuais.

Um exemplo dessa situação foi testemunhado por equipe de professores e funcionários do curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas (Fiei) da Faculdade de Educação da UFMG, no dia 26 de novembro de 2014. Como se organiza em regime de alternância, o currículo do curso prevê etapas intensivas na UFMG e etapas intermediárias em que os professores deslocam-se às aldeias para dar continuidade às atividades acadêmicas iniciadas na Universidade. A etapa intermediária em andamento na aldeia Boca da Mata, do povo Pataxó, no sul da Bahia, foi interrompida por uma violenta ação deflagrada pelo Estado brasileiro que pôs em risco a vida dos nossos alunos indígenas, das suas famílias e dos professores e funcionários da UFMG que lá estavam a trabalho.

De violência desproporcional, a ação orquestrada pelas polícias federal, militar e civil visava cumprir mandado de reintegração de posse aos fazendeiros invasores da terra tradicional Pataxó. Não contou com a presença da Fundação Nacional do Índio (Funai) e não foi comunicada aos indígenas. Cumpre notar que, até o momento em que este artigo é redigido, os pistoleiros capangas dos fazendeiros invasores continuam na região acuando e ameaçando esse povo.

Publicizar as realidades e lutas cotidianas desses povos, esclarecer quem são, como vivem, de que maneira vivem e a relação que estabelecem com seus territórios pode favorecer o respeito ao direito essencial à terra, condição para que os demais direitos se concretizem, entre eles, o direito à educação.

A área em litígio é de posse imemorial do povo Pataxó, segundo informam os idosos e lideranças desse povo e conforme indicam outros relatos históricos. O ocorrido chama atenção para o fato de que o próprio Estado infringe a Constituição brasileira ao não assegurar o direito indígena à sua terra ancestral e ao não protegê-la. O Estado também descumpre o artigo 6º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, que dispõe que os povos indígenas devem ser previamente informados e consultados sobre qualquer ação que venha a afetá-los.

A Fiei tem como princípios norteadores do seu currículo a contextualização da formação acadêmica, que se dá em consonância com a realidade dos povos indígenas aos quais atende, e o estabelecimento de estreita relação com seu território, ponto de partida e chegada na construção de saberes e conhecimentos compartilhados entre indígenas e universidade. Eventos como o anteriormente descrito indicam que tais princípios devem ser fortalecidos. A universidade deve, por um lado, formar o indígena para atuar nos seus territórios, contribuindo na busca de soluções para os problemas que comprometem a sobrevivência e autonomia dos povos. Por outro lado, tal parceria deve favorecer a educação do entorno, ou seja, a educação dos não indígenas que pouco ou nada conhecem sobre os povos indígenas brasileiros. Publicizar as realidades e lutas cotidianas desses povos, esclarecer quem são, como vivem, de que maneira vivem e a relação que estabelecem com seus territórios pode favorecer o respeito ao direito essencial à terra, condição para que os demais direitos se concretizem, entre eles, o direito à educação.

O professor Joaquim Maná Kaxinawa, em depoimento registrado no livro Escolas da floresta, organizado por Nietta Lindenberg Monte e Vera Olinda Sena, assevera: “O futuro que queremos para nossa escola é a demarcação da terra, porque a nossa terra, estando demarcada, nós temos todo futuro para nossa escola. Porque dentro dessa terra, nós ensinamos e aprendemos o que a gente souber”. Sem terra, o futuro indígena não é possível.

*Doutora em Linguística Aplicada pela Unicamp, professora adjunta do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Faculdade de Educação e integrante da comissão de coordenação do curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas (Fiei) da UFMG.