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Nº 1891 - Ano 41
09.02.2015

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opiniao

O riso carnavalesco

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

No conto “Anjinho de procissão”, que integra o livro A jumenta do padroeiro e outras histórias (1993), o escritor paraense Júlio Maria (1912-2003)cunhou, com categoria narrativa, um enredo capaz de abraçar com maestria, simplicidade e perspicácia a temática do riso. Jesuíno Doroteu de Almeida Vilaroel, narrador-personagem da referida história, nasceu em uma Sexta-feira da Paixão. A mãe dele havia feito uma promessa: se o filho viesse ao mundo com saúde, ele se apresentaria como anjo em todas as cerimônias da Semana Santa, até completar sete anos. Com o sucesso do parto, concretizou-se um fenômeno muito comum na prática da religiosidade brasileira: o sujeito promete para o outro cumprir. A fim de não fazer desfeita com o compromisso sagrado assumido pela mãe, Jesuíno cumpria a sua sina.

Quando chegou o penúltimo ano da promessa, o menino, com seis anos de idade, não se sentia mais à vontade para sair de anjo no cortejo santo, ainda mais por conta da gozação dos outros guris. Sem dar ouvidos àquela queixa, a mãe de Jesuíno fez o menino, mesmo chorando, cumprir a promessa na marra. Um ataque de risos dado pelo garoto, no meio da procissão, causou mal-estar generalizado. “Sem querer querendo”, tal atitude acabou livrando-o daquela indesejada sina. Esse fato inusitado é assim contado pelo próprio Jesuíno:

“Estava a procissão parada num dos ‘passinhos’, quando a Verônica subiu no seu banco e começou a cantar. De repente, dentro do silêncio respeitoso, irrompi numa estrepitosa gargalhada, que era mais uma vaia do que riso. Atraí sobre mim o olhar raivoso de todas as congregações, que me viram apontando para a Verônica, com o seu pano estendido, mostrando à multidão o rosto do Cristo de ponta-cabeça. Tia Emengarda aplicou-me um puxão de orelha que ficou dolorida durante muito tempo. No ano seguinte, não pude cumprir a promessa. O vigário não deixou. Ainda bem.”

O texto descontraído de Júlio Maria se desenha como uma ótima oportunidade de reflexão sobre a prática do riso, visando compreender seus efeitos no campo cultural, dividido entre o sagrado e o profano. A reação do padre, desaprovando a gargalhada de Jesuíno, em meio à sobriedade e seriedade que devem reger o ritual sagrado, conforme reza a tradição, tem raízes históricas. Na Idade Média, o riso esteve fora da esfera oficial. A Igreja medieval e o Estado feudal buscaram extinguir as manifestações risíveis de seu interior, pois o riso era a expressão tradicional do povo. Assim, a cultura daquele tempo estava vinculada aos tons sério e religioso, embora se verificasse nas festas oficiais e religiosas a presença de elementos cômicos e profanos, pois havia a incorporação dos bufões e bobos da corte para alegrar o público presente nos palácios e nas praças.

Acreditava-se que as manifestações risíveis invocavam a instabilidade do espírito humano e, por conseguinte, da sociedade. O riso fomentava certo temor no clero e no Estado, pois carregava uma enorme força de saber popular, portando, na sua essência e aparência, a negação do absoluto e do imutável. Em torno do riso, o povo buscava fugir das amarras sociais, encontrando no espaço supostamente alienado da alegria e da irreverência a possibilidade de viver longe das estruturas e das sólidas hierarquias medievais.

As festas promovidas pela Igreja e pelo Estado não carregavam aspectos risíveis e irreverentes. Tinham a intenção de consolidar a ordem social existente, visando consagrar um universo estático e perene com valores sociais e morais rígidos, realçando assim uma verdade imutável. Afirma Mikhail Bakhtin, em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1965), que “a festa oficial traía a verdadeira natureza da festa humana e desfigurava-a”, pois o seu tom era marcado por uma “seriedade sem falha, e o princípio cômico lhe era estranho”.

No período medieval, o semblante sério afirmou-se como única demonstração da firmeza de espírito, da verdade, do bem, da veneração, da docilidade e da redenção. O riso era concebido como expressão oriunda do povo, sendo, portanto, associado à irresponsabilidade, à inconsequência e à “baixeza de caráter”, bem como à liberdade e à irreverência diante do poder vigente. Por conta desse contexto, podemos entender melhor o confronto entre a seriedade implacável do vigário e o riso popular de Jesuíno.

Desde os primórdios do cristianismo, encontramos a condenação às expressões risíveis. São João Crisóstomo, por exemplo, declarava que o riso não provinha de Deus, era emanação do diabo. O cristão, portanto, deveria manter-se sério e contemplativo diante das coisas de Deus. Faz sentido acreditar na possibilidade de tal concepção ter influenciado a postura severa do padre, ao impedir que Jesuíno participasse do cortejo seguinte da Semana Santa. Munido pela representatividade divina, o vigário acreditava que estava agindo exemplarmente com a punição dirigida ao garoto, por conta do riso inoportuno.

Bakhtin, em livro já citado, considerava que, ao rir, o homem medieval expressava a vitória sobre o medo que o oprimia cotidianamente, fosse do poder divino, fosse daquele proveniente de homens poderosos. Nesse sentido, podemos inferir que a gargalhada de Jesuíno tinha essa pitada libertadora, “um meio de defesa contra a dor”, como diria Freud, em Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Oprimido pelos poderes familiar e religioso, Jesuíno foi à forra com o seu “riso carnavalesco”, o que lhe rendeu uma alegre manifestação de vitória sobre os aspectos negativos e nefastos que visam limitar o bem-estar humano.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.