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Nº 1891 - Ano 41
09.02.2015

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O ‘Teatro da memória’ de Greenaway

Trabalho de mestrado relaciona o filme O bebê santo de Mâcon com estrutura de conhecimento idealizada no século 16

Itamar Rigueira Jr.


O diretor britânico Peter Greenaway é um crítico da narrativa linear do cinema americano que lota salas ao redor do mundo. Pintor que tem como referências nomes como Caravaggio e Rembrandt, ele propõe alternativa vigorosa, realizando filmes que exploram caminhos totalmente distintos: suas sequências são como pinturas em movimento, nas quais explora, com gosto, recursos como o tom enciclopédico, a classificação arbitrária, o caos e o grotesco.

A professora Lucia Santiago, do curso de Design de Moda da Escola de Belas Artes, encontrou no filme O bebê santo de Mâcon (1993) elementos do Teatro da Memória de Giulio Camillo, filósofo, teólogo, praticante de magia e professor italiano do século 16. Camillo propôs uma estrutura baseada em colunas e degraus que representasse o mundo e promovesse a ascensão do espectador na direção do conhecimento, proporcionando “uma visão do mundo e da natureza das coisas”.

“A princípio, minha intenção era analisar, do ponto de vista da memória, as vestes do protagonista. Sandálias, roupas e coroa conferem ao menino a materialidade do divino, e a sequência em que ele é vestido remete a rituais da Igreja Católica”, explica Lucia Santiago. “Mas percebi que era possível fazer uma analogia com o teatro de Camillo. Greenaway usa intrigantes composições imagéticas para aguçar a imaginação do espectador e conduzi-lo ao interior de seu teatro [a trama se desenvolve em um palco italiano, e as filmagens foram feitas dentro de uma igreja] até as revelações finais”, continua a pesquisadora, que tem formação em artes e em moda.

Assim como o teatro de Camillo, o filme de Greenaway tem caráter didatizante, à semelhança de programas visuais do século 16. Representações gravadas em castelos e capelas contavam histórias do interesse de grupos políticos e religiosos dominantes. O Teatro da Memória e a obra do cineasta se apoiam no poder das imagens e da arquitetura e na forma de localizar o espectador. “Greenaway escolhe uma igreja de tamanho moderado, usa pouca luz – para que as imagens não tenham brilho excessivo –, e sua narrativa visual tem forte apelo afetivo. As imagens fixam-se rapidamente na mente do espectador e evocam suas memórias mais fortes. Essas são características importantes para a criação desse tipo de sistema mnemônico”, comenta Lucia Santiago.

Recurso de retórica

Seguindo a tradição hermético-cabalista e a memória artificial místico-mágica vigente no Renascimento veneziano, Giulio Camillo organizou seu Teatro da Memória inspirado nas regras de construção do teatro clássico romano, estabelecidas por Vitrúvio (séc. I a.C.) de acordo com os princípios da proporção do mundo e da teoria astrológica. Seu sistema considerava que há lugares eternos para as palavras, as coisas e as artes. E serviria ao orador (o rei, por exemplo), que, por meio do acesso às colunas e degraus, seria capaz de construir seu discurso.

Lucia Santiago escolheu sete imagens de O bebê santo de Mâcon para estruturar o que chamou de Teatro da Memória de Peter Greenaway. Essas imagens ocupam os sete graus da quarta coluna do teatro de Camillo, que é a coluna do Sol. “A coluna solar está relacionada à criação do mundo, do homem e de todas as coisas, característica que reforça o desejo do próprio Greenaway de construir imagens sobre imagens. Outras imagens podem ocupar esses graus, e as que foram escolhidas podem ser transferidas para as outras colunas, com a mesma ordenação ou não”, diz a pesquisadora.

Para lidar com o grande volume de informações disponíveis para a composição do teatro de Greenaway e do seu próprio trabalho, Lucia Santiago ergueu seu próprio “lugar de memória”: painéis onde os elementos (textos e imagens) mudavam constantemente de lugar. Além de Camillo e Greenaway, ela se inspirou também no Atlas Mnemosyne, do historiador da arte alemão Aby Warburg, estudioso do Renascimento europeu e da Antiguidade pagã. Não por acaso, os painéis acompanharam a pesquisadora na defesa do trabalho.

Dissertação: ‘O bebê santo de Mâcon’: o teatro da memória de Peter Greenaway
De: Lucia Aparecida Felisberto Santiago
Orientadora: Maria do Céu Diel de Oliveira
Defendida em 29 de agosto de 2014, no Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes