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Nº 1894 - Ano 41
09.03.2015

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Gênio da síncope e do cromatismo

Grupo de pesquisa da Escola de Música apresenta nos EUA lições e modinhas compostas por mulato brasileiro no século 19

Itamar Rigueira Jr.

A restauração e a análise do manuscrito de um tutorial para aprendizado do contrabaixo de 1838 renderam artigo científico que acaba de ser premiado pela Sociedade Internacional de Contrabaixistas (ISB, na sigla em inglês). O trabalho, de autoria do professor Fausto Borém e de alunos da Escola de Música, revela aspectos inéditos da vida profissional e pessoal de Lino José Nunes (1789-1847), que viveu no Rio de Janeiro nos reinados de D. João VI e D. Pedro I.

O grupo interdisciplinar “Pérolas” e “Pepinos” da Performance Musical encontrou documentos como as certidões de casamento e de morte do músico: Lino José Nunes era filho de “parda liberta” de Minas Gerais e de pai desconhecido. Ele foi enterrado no Convento de Santo Antônio, no Rio.

De acordo com Fausto Borém, Lino é um bom exemplo da situação dos mulatos que já não eram mais escravos tampouco ­senhores – muitos encontraram seu lugar como artistas na sociedade da época. “O fato de Lino ser mulato ajuda a explicar a presença pioneira, em suas lições, de um hibridismo musical que reflete o ambiente social do novo reino, combinando a ópera, a música militar e a emergente música popular com traços afro-brasileiros dos lundus e modinhas”, afirma Borém. “Encontramos um protótipo da síncope brasileira, padrão rítmico cujo suingue desafia constantemente a pulsação na música popular. Essa característica se transformaria num marcador genético de gêneros como o choro e o samba no fim do século 19 e começo do século 20.”

Prosódia ‘atravessada’

Além do artigo sobre o método, que sairá na revista da ISB, Borém vai publicar no exterior outro trabalho sobre as três modinhas de Lino, no qual demonstra que ele foi o compositor brasileiro mais cromático até o período imperial – o cromatismo consta de alterações que afastam a música de sua tonalidade principal. “Essa dramaticidade de Lino deriva da ópera, mas sua distância da rigidez dos professores europeus pode ter facilitado a liberdade ‘exagerada’ do compositor brasileiro”, comenta o pesquisador.

Fausto Borém encontrou outra marca da genialidade de Lino nas modinhas, fenômeno que chama de prosódia “atravessada”, desencontro proposital entre as sílabas tônicas das palavras e os apoios na métrica musical. Mais comum na música popular do que na erudita, esse procedimento pode ser observado nas síncopes da modinha De huma simples amizade, em que a mulher apaixonada, como se estivesse sofrendo uma síncope cardíaca, ofega e pronuncia “quedea / mornos / fazmor / rer”, em vez de “que / de amor / nos faz / morrer”. Outra descoberta da pesquisa é que a letra de uma das modinhas, que antes se supunha anônima, foi identificada como o verso 28 da Parte 1 do poema Marília de Dirceu, do inconfidente Tomás Antônio Gonzaga.

As lições e as modinhas de Lino Nunes serão apresentadas por Fausto Borém no espetáculo Musa Brasilis from 1838 to 2015, durante convenção mundial da ISB, em junho deste ano, na Colorado State University (EUA). No mesmo evento, o pesquisador estreará sua composição eletroacústica Three arrays for amazing mays, dedicada ao pianista de jazz norte-americano Bill Mays. Eles vão tocar juntos, dialogando com as vozes manipuladas de Sarah Vaughan, Frank Sinatra e Al Jarreau, cantores com os quais Mays trabalhou. Borém também estreará sua peça cênica Girl from Ipanema Variations, apoiado por pesquisadores e músicos da Unicamp, Unesp, Universidade Federal de Goiás e das orquestras sinfônicas de São Paulo e de Minas Gerais.

O grupo de pesquisa coordenado por Borém doou suas edições das músicas de Lino à Sociedade Internacional de Contrabaixistas, que vai vender o download das partituras das modinhas e das lições com o objetivo de arrecadar recursos para financiar projetos educativos e de pesquisa de contrabaixistas de todo o mundo.