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Nº 1897 - Ano 41
30.03.2015

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opiniao

Cultura, identidade e territorialidade camponesa

Lidia Costa *
Vagner Luciano de Andrade **

O século 21 trouxe consideráveis conquistas na área de Ciências Sociais e Humanidades, no que se refere à legitimação e autoafirmação de comunidades em abandono e esquecimento. Mas ainda há muito ainda a ser feito! São de Cláudio Feldman as sábias palavras “sei que o sol nasce para todos. Esta verdade, não nego! Mas uns se aquecem na praia e outros batem martelo”. Essa singela mensagem retrata bem a histórica realidade brasileira, em que milhões são relegados ao risco pessoal e/ou social. Analfabetos, camponeses, deficientes, desempregados, homossexuais, idosos, indígenas, mulheres, moradores de rua, negros, quilombolas e pobres, entre outros, fazem parte da lamentável trajetória de preconceito e exclusão social enraizada na cultura brasileira. Felizmente, após a redemocratização do país, movimentos sociais e discussões políticas têm consolidado relevantes transformações neste cenário.

O Brasil vivencia, nas últimas décadas, intenso processo histórico de reconhecimento e ressignificação do papel de submissão e desrespeito até então atribuído às camadas marginalizadas. Socialmente consolidadas à margem da sociedade moderna, hoje reafirmam sua condição existencial e importância no âmbito da democracia e dos direitos humanos. Assim, cada grupo social tem suas próprias questões existenciais, culturais, econômicas e históricas, que materializam seus modos de vida, de apropriação do espaço e de condições de trabalho, construindo identidades e legitimando-as. Cada grupo, portanto, constrói complexas relações sociais que marcam sua ressignificação, sua singularidade e sua autenticidade no mundo urbano-industrial capitalista. Um exemplo clássico paira sobre a cultura, a identidade e a territorialidade das populações do campo. Durante anos, essas populações foram excluídas e marginalizadas em decorrência de discursos políticos e econômicos que impunham ao campo o estereótipo de atraso e retrocesso.

Hoje, os camponeses engajados e organizados buscam sua “voz” e “vez” no seio das decisões que remodelam o país. Para exemplificar a historicidade desses processos de reafirmação, citamos a UFMG, com a Licenciatura em Educação do Campo, que forma professores para atuação nas escolas camponesas. Segundo informações do colegiado, o curso era ofertado desde 2005 como projeto experimental e passou a integrar a oferta regular da Universidade partir da adesão ao Plano de Reestruturação e Ampliação das Universidades Federais (Reuni). São ofertadas quatro habilitações: Ciências Sociais e Humanidades, Ciências da Vida e da Natureza, Letras, Literatura e Artes e Matemática, numa perspectiva interdisciplinar, transdisciplinar e multidisciplinar.

Essa demanda legítima de formação também move outras universidades do país, garantindo discussões teóricas sobre a realidade camponesa brasileira tanto nos conteúdos específicos que permeiam o currículo da educação básica quanto na formação humana e pedagógica dos profissionais que, em sua maioria, são camponeses com vivências e experiências consideráveis. Muitos dos alunos mantêm relações com assentamentos, comunidades rurais e com as denominadas “escolas família-agrícola”, o que legitima e enriquece a formação curricular e humana proposta pelo curso. O profissional graduado nessa licenciatura atua posteriormente não apenas como educador, mas também como mobilizador social com responsabilidades e competências específicas para o ensino no âmbito cultural e territorial do meio rural, contribuindo decisivamente para legitimar a identidade camponesa com saberes e fazeres, condições existenciais e escalas de tempo e espaço.

Contraditoriamente, o profissional formado vivenciará muitas adversidades, dilemas e desafios. No cenário atual, tem-se, de um lado, a formação específica de educadores camponeses, mas também, na contramão do processo, o fechamento e/ou nucleação de escolas rurais em Minas Gerais e em todo o país. Essa situação se deve a questões estruturais e políticas. Várias são as argumentações a favor da desativação de escolas rurais: falta de professores, baixa quantidade de alunos matriculados e frequentes, condições naturais e humanas adversas, distâncias que inviabilizam deslocamentos. Há um abismo aqui se considerarmos a escola como o espaço máximo da comunidade rural. Nela se desdobram ações e reações. Ela é o núcleo de gestação e força indutora da autenticidade camponesa. Nunca deveria ser fechada.

Lamentavelmente, vê-se, cada vez mais, o fechamento de escolas rurais públicas e o direcionamento de crianças, adolescentes e jovens do campo a estabelecimentos educacionais urbanos nas sedes municipais ou distritais que centralizam o atendimento, sem preocupação com a especificidade do camponês e seu jeito de ser e estar no mundo. Isso configura a realocação de um problema social. A retirada do camponês de sua realidade pode ser o eixo causador de muitos problemas que variam de indisciplina e hiperatividade a desconexão e rompimento com sua realidade e origens. É necessário preconizar a formação de uma educação legitimamente camponesa, pautada na visão crítica da sociedade e no real conhecimento sobre a cultura, a identidade e a territorialidade camponesa, visando a sua valorização e consolidação como condição existencialmente humana e digna de ­direitos irrevogáveis.

* Graduanda em Educação do Campo/Ciências Sociais e Humanidades (FaE/UFMG) e em Letras (Português/Inglês) pela Unimontes
** Educador e mobilizador da Rede Ação Ambiental com formação em Ecologia, Geografia, Magistério, Patrimônio e Turismo