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Nº 1901 - Ano 41
27.04.2015

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Os sentidos do nascer e a revolução no formato expositivo

Betânia Gonçalves Figueiredo*

O rito do nascimento faz parte da diversidade cultural. O parto normal é próprio a todos os animais e tornou-se um momento especial para a espécie humana. No entanto, valendo-se da criatividade que o distingue, o ser humano criou a cesariana, alternativa à sequência natural, após uma gestação de nove meses, utilizada em situações de risco iminente para a parturiente ou para o ser prestes a vir ao mundo.

Para que pudesse ocorrer de forma segura, tanto para a gestante quanto para o bebê, foram necessários, em uma análise simplificada, a produção de conhecimento em três esferas e o desenvolvimento de técnicas apropriadas à realização das cesarianas: a investigação do corpo humano, a análise da sua anatomia, especialmente, das camadas que separam a pele do abdômen até o útero, e a forma de circulação do sangue.

No mundo ocidental, as investigações do corpo humano e sua descrição detalhada surgem a partir dos séculos 15 e 16. A invasão do abdômen em direção ao útero em pessoas vivas exigiu a descoberta de métodos que tornassem o processo suportável, minimizando a dor e garantindo que essa invasão não fosse contaminada por infecções irreversíveis. Isso também contribuiu para que outras cirurgias de grande porte fossem realizadas. Surgiram os recursos anestésicos e os processos de assepsia no campo cirúrgico, datados da segunda década do século 19.

Ao longo da história, especialmente nos últimos 150 anos, o processo do nascimento foi sendo invadido por tecnologias e intervenções médicas que alteraram a percepção natural dos Sentidos do nascer. A presença desse arsenal técnico e da especialização médica é, sem dúvida, importante pela possibilidade de salvar muitas vidas, mas, em contrapartida, esse avanço contribuiu para expulsar a parturiente dos processos decisórios do desenrolar da gravidez, acarretando uma desumanização do parto.

O resultado, no Brasil contemporâneo, é catastrófico. Somos, atualmente, o campeão mundial de cesarianas no mundo. Enquanto a Organização Mundial da Saúde sugere 15% de cesarianas, no Brasil esses processos atingem algo em torno dos 80%, percentual que aumenta na rede privada. Trata-se de um quadro grave, que transformou o excesso de cesarianas em problema de saúde pública. A situação envolve diversos fatores de ordem técnica, de culturas criadas, fomentadas e enraizadas pelo poder do conhecimento médico, pela disseminação equivocada de ideias sobre o parto natural, muitas vezes em razão de interesses econômicos.

Nesse cenário, a exposição Sentidos do nascer, produzida em Belo Horizonte, por meio de parceria entre UFMG e Sistema Único de Saúde (SUS), com patrocínio da Fundação Melinda e Bill Gates e das agências CNPq e Fapemig, distingue-se pela ousadia, não apenas pela temática que aborda, mas, principalmente, pela forma como o faz.

O projeto da exposição é direto, sem o espetáculo tão comum em muitos modelos expositivos vigentes. Os custos também foram baixos, e, para viabilizar um sistema itinerante, ela já nasce em contêineres, visando a um encontro mais ágil e fácil com um público o mais amplo possível. As ideias de interação não pedem benção para as tecnologias sofisticadas que, muitas vezes, deixam os visitantes a ver navios em razão dos recorrentes problemas técnicos ou do exagerado impacto tecnológico que causam, provocando uma perda da essência.

Tudo na exposição Sentidos do nascer é simples e funciona muito bem, como o processo do parto natural. Seu conceito principal é claro e bem desenvolvido do começo ao fim. O ponto alto é o convite para que os visitantes convivam harmoniosamente com seus “irmãos”, até o momento emocionante do nascimento. Ao completarem o percurso, muitos se emocionam e pedem para nascer de novo. Freud deve explicar.

A exposição aceitou o desafio de tratar de um tema muito importante, que envolve, em grande medida, todos nós (os que já nasceram e os que estão por nascer). E o resultado não poderia ser mais interessante. Uma exposição direta, com uma mescla inteligente e criativa dos Sentidos do nascer e dos sentidos da interação em museus de divulgação de conhecimento.

Além dos méritos já citados, há outro aspecto a destacar: o suporte escolhido para a mostra. Como se desejava atrair e conquistar o público, a exposição foi concebida para ser itinerante. Isso não chega a ser novidade, pois estamos acostumados a receber e visitar exposições de diversos tipos e formatos. A própria UFMG conta com dois museus nesse formato: o Museu Ponto e os Sentimentos da Terra, duas exposições-caminhões, desenvolvidas em tempos diferentes, que trabalharam com a mesma ideia engenhosa e econômica de criar um módulo expositivo itinerante.

O diferencial da exposição Sentidos do nascer foi o formato em U escolhido para disposição dos quatro contêineres que a abrigam. Eles possibilitam um deslocamento ininterrupto e gradativo que culmina no nascimento do próprio visitante: o máximo da exposição!

Sentidos do nascer merece atenção e estudo, especialmente em relação a dois importantes aspectos sociais: os problemas de saúde pública causados pelo excesso de cesarianas e os modelos educativo-culturais das exposições disponíveis. Em geral, esses dois segmentos exigem a ação de grupos interdisciplinares que avaliam questões econômicas e sociais e consideram os tipos de público envolvidos e os impactos de ações como as que são desenvolvidas em exposições e museus, que podem levar a resultados surpreendentes. Sentidos do nascer não só surpreende como encanta.

* Professora do Departamento de História da Fafich e integrante do grupo Scientia