A arte drag em Belo Horizonte e no mundo
28 de junho de 2025
Por Fernando Silva,
relações-públicas e assessor de comunicação do Espaço do Conhecimento UFMG
Brilhos utilizados não apenas como enfeite, mas como reafirmação de presença. Vozes que reinventam tons, gestos que ocupam espaços com bom humor, drama e verdade. Drag queens nascem, definitivamente, da conexão entre a ousadia e a delicadeza.
Há muitos anos, pessoas queers utilizam a arte como forma de comunicação de seus corpos e suas lutas. Muito além dos palcos e dos holofotes, drag queens desempenharam e têm desempenhado um papel fundamental na história da luta por direitos da comunidade LGBTQIAPN+, unindo arte e crítica social para subverter normas e desafiar preconceitos. Neste processo, consumir a arte drag e refletir sobre sua potência é também celebrar a criatividade, a coragem e a complexidade de diferentes modos de (re)existir.
RuPaul, modelo, cantor, ator, apresentador e a drag queen mais famosa do mundo contemporâneo. (Créditos: Reprodução | Revista Vogue 2019).
Antes mesmo de se popularizar, em grande parte graças ao importante reality vencedor de diversos Emmys, RuPaul’s Drag Race, a arte drag tem raízes profundas, destacadas em dois contextos principais: (i) as tradições teatrais nas quais homens interpretavam papéis femininos, em um período em que as mulheres eram impedidas de atuar graças às imposições das normas de gênero da época e, principalmente, (ii) a cena underground dos bailes drag, que posteriormente se fortaleceram nos ballrooms, como espaços fundamentais da cultura LGBTQIAPN+ no século 20.
Alguns historiadores traçam as origens drag no teatro da Grécia e Roma antigas, onde homens representavam personagens femininas. Séculos depois, Shakespeare também estimulou essa ação no teatro elisabetano. Por outro lado, há quem defenda que as verdadeiras origens drag são mais recentes. Lady J, drag queen estadunidense com doutorado focado na história drag, indica que a estreia do termo na Inglaterra vitoriana, por volta de 1860, quando Ernest Boulton descreveu seu ato de se transformar como “drag” (que, em português, significa “arrastar”). Esse é o primeiro uso conhecido do termo, possivelmente inspirado nas anáguas que os homens usavam e que arrastavam pelo chão durante suas apresentações no teatro.
Avançando no tempo, nas décadas de 60, 70 e 80 nos Estados Unidos, a cultura ballroom consolidou-se como um espaço seguro para corpos “rejeitados” socialmente, seja por suas performances de gênero, padrões estéticos, raça, cor ou identidade, para viverem seu ser e celebrar sua individualidade. As drag queens de hoje carregam as influências desses bailes, organizados principalmente por artistas negras, transexuais e travestis, que transformaram a história.
No GIF, o voguing, um estilo de dança performática que surgiu como forma de expressão e resistência nas comunidades negras e latinas LGBTQIAPN+. Inspirado nas poses elegantes das modelos que estampavam as capas da revista Vogue, os dançarinos seguem o ritmo com movimentos precisos, quase como fotografias vivas. (Créditos: Reprodução | Paris Is Burning).
Cada vez mais, o fazer drag contemporâneo se transforma em novas possibilidades. São muitas nuances, de performances diversas, passando por estilos como Conceptual Queen (estética conceitual), Performance Queen (dança e performance), Club Kid (visual futurista), Look Queen (fashionista), Beauty Queen (maquiagem impecável), Drag Andrógina (fusão de gêneros e ambiguidade), Comedy Queen (humor e paródia), Camp Queen (exagero teatral e estético), Pageant Queen (elegância clássica e glamour) Drag King (performance do masculino) e muitas outras mais!
Queens da cena belo-horizontina. Da esquerda para direita, Kayete (jornalista, atriz e apresentadora), Wandera Jones (costureira e performer inovadora), Charlotte (artista, produtora e DJ), Joselito the Clown (artista, designer e podcaster), Melody Queen (performer e participante do Drag Race Brasil – Temporada 2) e Aquarela (maquiadora, publicitária, DJ e miss simpatia do Drag Race Brasil – Temporada 1).
Durante décadas, drag queens estiveram na linha de frente das mobilizações LGBTQIAPN+, desde a Rebelião de Stonewall, nos anos 1960, até manifestações mais recentes por visibilidade, saúde e cidadania à comunidade.
No Brasil, não é diferente! As transformistas – nome do qual as drag queens brasileiras se identificavam nos anos 60, 70, 80 e 90 – carregam uma importância que transcende o entretenimento. Foram elas que, desde o início da cena nacional, abriram caminho, rompendo silêncios e enfrentando preconceitos quando sequer existia espaço para a diversidade. Em Belo Horizonte, a cena LGBTQIAPN+ pulsa com força e diversidade. Ao longo dos anos, artistas vanguardistas como Nero, Vânia Bambirra, Michelle Loren, Walkíria La Roche, Nayla Brizard, Kayete e Wandera Jones, além de outros expoentes como Aquarela, Penélope Fontana, Mellody Queen, Carambola, Layla Miller, Charlotte, Mira MiuMiu e Voga, dentre muitas outras, contribuíram e contribuem para transformar os concursos e os palcos da capital em espaços de provocação e resistência. Seja em boates, teatros ou nas ruas, essas drags movimentam a cultura local e constroem pontes entre arte e política.
Existem marcos da história drag, e um, sem dúvidas, está em 2009, quando uma queen decidiu mudar os rumos da história: RuPaul. A estreia do reality show RuPaul’s Drag Race, nos Estados Unidos, inaugurou um novo capítulo na visibilidade da arte drag. Ao ganhar projeção internacional, o programa levou para as telas do mundo o talento e a criatividade de centenas de artistas . Foi um marco na cultura LGBTQIAPN+, ao transformar uma expressão artística antes marginalizada em fenômeno global de mídia, moda e entretenimento. O show não é perfeito, e enfrentou diversas problemáticas ao longo de suas temporadas, mas de maneira revolucionária, impactou o imaginário coletivo sobre essa arte. Se antes as drags estavam restritas a espaços noturnos, palcos alternativos e festas underground, passaram agora a ocupar a televisão, a música, o teatro e o cinema. Pabllo Vittar e Gloria Groove são excelentes exemplos do sucesso drag que deram início a sua arte após inspirações no reality de RuPaul.
Hoje, o programa se tornou um império cultural, com versões em diversos países. Além da edição original estadunidense, o formato se expandiu para Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, Espanha, França, Itália, Alemanha, Holanda, Bélgica, Suécia, México, Filipinas e, felizmente, o Brasil (que caminha para sua segunda temporada do reality em julho de 2025). Também existem edições globais como UK vs the World, Canada vs the World e Global All Stars, que reúnem participantes de diferentes países em um só show.
Mais do que um programa de competição, Drag Race criou um espaço de celebração da diversidade, de acolhimento de corpos historicamente marginalizados e de afirmação da beleza que existe na diferença.
Queens de Rupaul’s Drag Race. Da esquerda para direita, Manila Luzon (Temporada 3, All Stars 1 e All Stars 4), Irene the Alien (Temporada 15 e All Stars 10), Nymphia Wind (Temporada 16), Rupaul (apresentadora, produtora executiva e criadora do RuPaul’s Drag Race e franquias), Jaida Essence Hall (Temporada 12), Sasha Colby (Temporada 15) e Mistress Isabelle Brooks (Temporada 15 e All Stars 10).
RuPaul afirma: “We’re all born naked, and the rest is drag”, em tradução livre, “todos nascemos nus, e o resto é montação”. Ser drag vai além de uma performance visual, é uma expressão artística aberta a todas as pessoas. Homens, mulheres e pessoas não binárias também constroem essa arte. Ser drag é, muitas vezes, um exercício de pesquisa, técnica e experimentação. Envolve saberes diversos como costura, maquiagem, música, teatro, humor, presença de palco e mais. No fundo, cada drag se monta com um pouco de tudo isso.
Ao olharmos para uma drag queen, vemos mais do que brilhos e saltos altos. Vemos alguém que se recusou a desaparecer. Que decidiu criar sua própria linguagem. Que transforma o próprio corpo em resistência. Em um mundo que ainda insiste em impor padrões, ser drag é, e sempre será, um ato de liberdade.
Referências e para saber mais:
Blog do Espaço – Arte e resistência LGBTQIAPN+: a cultura Ballroom em Belo Horizonte
Revista Mordidas, por Anna Vilela, Felipe Pellucci, Juan Santos e Wallace Pacheco
A história esquecida das drag queens e kings do passado
Rupaul’s Drag Race Wiki Fandom
Draglicious – Como RuPaul foi aclamada pelo mundo
O Tempo – Drag queens de BH movimentam arte e economia LGBTQIAPN+; conheça 7 delas
Estado de Minas – Ficção e realidade: como reality shows inspiram drags queens de BH
Para além do centro de BH: Venda Nova
Expografia e Fotografia na exposição “Olhares Metropolitanos”