A morte dos autores – Espaço do Conhecimento UFMG
 
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A morte dos autores

Como as obras e produtos culturais nascem?

 

02 de maio de 2023

 

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Quando fazemos um texto para o Blog do Espaço, temos muita preocupação com tudo que escrevemos, em como nossas palavras poderão ser interpretadas e também em como nós podemos utilizá-las para ensinar alguma coisa da forma mais dinâmica, inclusiva e agradável o possível. Porém, depois que nossos textos estão no mundo, nós, bolsistas, estagiárias, assessoras e assistentes que os escrevemos com tanto carinho e cuidado, desaparecemos por trás de suas palavras. O conteúdo nos supera e, de certa forma, nós, autores e autoras, morremos.

 

No momento em que nossos textos são lidos por vocês, eles ganham outros contornos, outra vida e se transformam de maneira completamente independente de quaisquer pretensões que tivemos ao escrevê-los. Cabe a vocês, que na leitura os interpretam e ressignificam, dar continuidade à vida dos textos e pouco importa o que nós, finados autores, desejamos – ou melhor, desejávamos. 

 

Isso é um resumo muito básico de uma ideia que surge em 1967 em um ensaio do pensador francês Roland Barthes, no qual criticava a percepção de que era do autor a palavra final sobre suas criações. 

 

Roland Barthes (Reprodução / BBC)

 

Barthes recusava essa premissa pois acreditava que ela limitava qualquer obra a apenas uma única e definitiva interpretação. Quando o autor define qual a proposta de sua criação, ele invalida qualquer outra abordagem interpretativa pois essa é uma visão diferente da originalmente “certa”. 

 

Imagine que você está diante de uma obra surrealista de Dalí. Parte da graça é surfar nas loucuras dele e dar um significado próprio para as pinturas, mesmo sem saber qual era o objetivo do Dalí ao pintá-las. Agora imagine que ele, logo após terminar cada pintura, detalhasse exatamente tudo aquilo que elas representam, antes mesmo de nós termos a chance de interpretá-las.

 

Um autor ter controle absoluto sobre suas criações, descarta quaisquer análise que façamos e, por isso, Barthes defende que um autor deve morrer no momento exato em que nasce um leitor, pois é a partir das reflexões dele que novas ideias surgirão.

 

Por isso, Barthes traz uma discussão sobre qual é o verdadeiro trabalho de um autor quando produz uma obra original e o que é, também, essa tal originalidade.

 

(A morte encontra um Autor escrevendo sua vida : Edward Hull 1827)

 

A primeira coisa que precisamos compreender é que não existe nenhuma obra original. Uma peça artística, seja uma pintura, um espetáculo teatral, uma escultura, uma poesia ou um filme é, de muitas formas, um apanhado de referências e símbolos que o autor dispôs de um jeito muito específico para criar aquela coisa “nova”. Não apenas na arte, mas em qualquer coisa que façamos, é impossível que criemos algo a partir do nada. Mesmo o mais preciso e inédito artigo científico ou a mais bela poesia existe a partir de alguma coisa, mesmo que um idioma, um código linguístico ou um alfabeto. O nosso ofício como autores é então dispor todas as nossas referências de alguma forma diferente, mesmo que só um pouquinho. Então, desses caquinhos repetidos e reorganizados, nós criamos novas ideias. E quando vocês lêem, vocês se relacionam com nossos textos e mais uma vez, uma coisa nova vai surgir.

 

Isso não tira, no entanto, a responsabilidade que a autora tem sobre sua própria obra. Como apontamos no começo, aqui no Espaço pensamos o tempo todo em como usar as palavras das melhores maneiras possíveis para criarmos textos instrutivos, educativos, mas também respeitosos e agradáveis. Às vezes (mais do que vocês imaginam) não conseguimos de primeira, nem na segunda e nem na terceira tentativa, o que torna o nosso processo de escrita bastante cuidadoso e também atento. No entanto, mesmo com todo o cuidado cometemos deslizes. 

 

Para que sejamos melhores sempre, precisamos o tempo todo refletir sobre o que escrevemos, sobre nós mesmos e sobre quem somos quando estamos enterrados por trás de nossas próprias palavras. Nossos textos são partes bem pequenas de nós e carregam nossas percepções, nossas memórias e nossas ideias. Por mais que tentemos nos manter invisíveis e que ainda venhamos a “morrer” quando vocês lêem nossos textos, uma partezinha minúscula de quem éramos ao escrever essas palavras reside nelas. 

 

Quando pensamos em um bom filme, uma pintura lindíssima ou um bom livro, não hesitamos em elogiar quem os fez. Não poupamos elogios ao gênio que foi capaz de alcançar tal sensibilidade, beleza, precisão ou potência. Mas quem são de fato essas pessoas? Não deveriam esses criadores extraordinários também serem “mortos”?

 

No fim das contas, quem escreve o livro best-seller, quem realiza o filme ganhador de Oscar ou quem pinta uma obra prima é um ser humano de carne e osso, cheio de sonhos, aspirações e também muitas falhas – algumas muito mais problemáticas do que outras. E acontece às vezes, da mesma forma como nós deixamos pequenas partículas pessoais nesses textos, sobram reminiscências dessas personalidades em suas próprias criações. 

 

Barthes diz que uma obra não pertence mais ao seu criador a partir do momento que está no mundo. É verdade, afinal, quando entramos em contato com uma obra de arte ou qualquer coisa que façamos o exercício de “interpretar”, trazemos nossas próprias referências e nos relacionamos com elas de formas bastante únicas e diferentes. É isso que ele chama de morte do autor, mas isso não significa que devemos nos esquecer de quem são ou foram essas pessoas, em qual contexto elas viveram, quais ideias elas defendem e como as suas vidas acabaram influindo em suas criações. 

 

H. P. Lovecraft, por exemplo, foi um escritor de horror dos anos 20 que se popularizou por criar o “horror cósmico” ou “horror lovecraftiano”. Em cartas enviadas por ele e que agora são públicas e também em vários de seus contos notamos o quão racista e xenofóbico ele era. Na verdade, muito do “medo do desconhecido”, que é a base de sua criação, é uma metáfora para o medo que o homem branco americano de classe média tinha dos estrangeiros e também dos negros.

 

Reconhecer os contextos nos quais pessoas (autores) como Lovecraft cresceram, nos faz perceber como esses criadores, enquanto vivos, reconheciam o próprio mundo e como essas impressões se inscrevem em tudo que deixaram para nós. Na lógica de Barthes, eles não exercem, ou pelo menos não deveriam, qualquer influência naquilo que já publicaram, mas suas ideias, ainda estão bastante vivas e reconhecíveis. 

 

Conhecer e explorar os subtextos por trás das escrituras e imaginações é um exercício de paciência e às vezes decepção, mas indispensável para lermos os textos da forma mais honesta possível. Depois que um texto está entregue, ele é nosso, claro, mas antes de ser apenas nosso ele já foi de uma única pessoa e conhecer essa pessoa é importante para entender a obra. 

 

Esse senso crítico de saber que o que temos em mãos foi feito por alguém não tão agradável, nos torna atentos para o que consumimos.

 

Entretanto, uma das coisas mais mágicas da arte é que sua interpretação nunca é exatamente sobre a obra em si. A arte deixa de ser sobre o que a pessoa escreveu e passa a ser sobre o que as pessoas leram. As memórias e significados que nós damos para cada filme que assistimos, para cada música que ouvimos e cada obra de arte que admiramos se tornam muito maiores que as iniquidades das pessoas que as fizeram. 

 

“(…) sabemos que, para devolver à escritura o seu futuro, é preciso inverter o mito: o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor”  1967 – Barthes. 

 

[Texto de autoria de Gabriel Barcelos, estudante de jornalismo e bolsista de som do Núcleo de Comunicação e Design]