Kimbo Escrevivências: Quem fala da mulher preta? – Espaço do Conhecimento UFMG
 
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Kimbo Escrevivências – Quem fala da mulher preta?

A abordagem literária que funde a experiência de vida, a escrita e a sobrevivência

 

16 de janeiro de 2024

 

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A perspectiva de quem conta uma história sempre muda de acordo com seu interlocutor, ou seja, quem diz, escolhe como e o quê dizer. Em edição anterior do nosso Kimbo, lá de Angola, com o livro As Aventuras de Ngunga, falamos sobre como é perigoso ter uma história única. A escritora de quem falaremos a seguir entende muito bem sobre trazer visões únicas e paradoxalmente distintas de pessoas que normalmente não vemos exercendo protagonismo. 

 

Neste texto, ampliaremos nosso horizonte. Ao invés de falarmos sobre literaturas africanas, apresentaremos o estilo de escrita de uma brasileira que tem se destacado nacional e internacionalmente. O movimento dessa escritora para trazer outras narrativas tem até um nome: Escrevivências. Já conhece esse termo?

 

Mulher escrevendo. (Créditos: Getty Images).

 

Mas antes de nos debruçarmos sobre o conceito, é preciso fazer uma breve apresentação, afinal, sua biografia influenciou sua escrita e, por conseguinte, seus leitores. 

 

Conceição Evaristo, nascida em Belo Horizonte (BH), Minas Gerais, em 1946, é uma renomada militante do movimento negro, escritora e literata brasileira. Formada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro  (UFRJ), a escritora possui mestrado pela mesma instituição, com a dissertação Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade (1996), que justamente discute o “ato de fazer, pensar e veicular o texto literário negro”. Ela é também doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com a tese Poemas malungos, cânticos irmãos (2011), em que analisou a poesia dos afro-brasileiros Nei Lopes e Edimilson de Almeida Pereira e do angolano Agostinho Neto.

 

Evaristo cresceu em uma favela na periferia de BH. Foi empregada doméstica, estudou em escolas públicas e, mais tarde, aos 25 anos, teve a oportunidade de frequentar a universidade. Sua trajetória de vida é marcada por desafios, mas também pela dedicação à educação e à literatura. Seu empenho nos estudos era tão ferrenho que, quando criança, até mesmo ensinou sua mãe a ler, além de ajudar outras crianças da comunidade a estudar.

 

Ilustração – Narrativas Negras (2020). (Créditos: Millene Vilela). 

 

Sua obra mais conhecida é o romance Ponciá Vicêncio (2003), que aborda a vida de uma mulher negra e suas experiências ao longo do tempo. Outros títulos incluem as coletâneas de contos Becos da Memória (2006) e Olhos d’Água (2014), que recebeu diversos prêmios.

 

Conceição Evaristo é conhecida por suas contribuições significativas para a literatura brasileira, especialmente no que diz respeito à representação da mulher negra e à abordagem de questões relacionadas à discriminação racial e social, dedicando-se a temas como literatura afro-brasileira, feminismo negro e questões de gênero. 

 

Por essa dedicação a temas tão sensíveis e pouco explorados pela maioria dos autores, que não atribuem protagonismo a mulheres negras, e atrelando sua escrita à sua própria vivência, Conceição passa a chamar sua forma de escrever de Escrevivências, termo esse profundamente vinculado ao seu lugar de fala, que parte de uma sociedade racista que não reconhece a complexidade das vidas negras nos personagens existentes.

 

“Desde o dia em que o homem de Ponciá havia batido nela tanto, a ponto de fazer sangrar-lhe a boca, depois condoído do sofrimento que infligira à mulher, nunca mais ele a agrediu e se tornou carinhoso com ela. Foi tanto pavor, tanto sofrimento, tanta dor que ele leu nos olhos dela, enquanto lhe limpava o sangue, que descobriu não só o desamparo dela, mas também o dele. Descobriu o quanto eram sós. Percebeu que cada um tinha os seus mistérios.”

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. 93 p.

 

Entenda, por uma necessidade de se ver representada, a autora passa a escrever para outras mulheres como ela. Enquanto a autobiografia representa um relato pessoal da vida de alguém, outros gêneros, como biografia, memórias, diários e ficção baseada em eventos reais, adotam abordagens diferentes para narrar histórias acerca da vida das pessoas.

 

A escrevivência seria uma mescla desses gêneros, com a diferença principal se dando no protagonismo sendo exercido por pessoas negras, em específico, mulheres negras. Enquanto em uma história qualquer, por exemplo, vemos a personagem negra feminina sendo a melhor amiga da protagonista, geralmente branca, ou, por vezes, até há uma personagem negra feminina, mas essa é colocada numa posição subalterna, de pouca relevância ou reforçando estereótipos, na Escrevivência, Conceição mistura a realidade de sua própria vida com a ficção e propõe histórias singulares de negros para negros sobre a negritude. Sobretudo quando mistura o que seria um texto oralizado em um texto escrito. Ora, se os povos negros são conhecidos por transmitirem seus saberes oralmente, essa característica tão singular não poderia deixar de se fazer presente na forma de escrever de Conceição.

 

O termo tem origem em uma brincadeira entre as palavras escrever, ‘viver’ e ‘se ver’: Escreviver… Escrevivências. A genialidade da autora reside também na subversidade do ato de contar histórias; se antes mulheres negras estavam relegadas ao papel de entreter a casa grande com suas histórias, agora elas podem e devem falar de si para outras iguais à elas.

 

Ou seja, mulheres e homens negros são agentes ativos de suas histórias! O que vivem, veem e fazem interessa ao leitor e esse sim, pode pertencer a etnia que for.

 

Apesar de não romantizar a vida das mulheres periféricas, é possível ver traços de afetuosidade em sua escrita, o que colabora com a desconstrução da visão de que pessoas negras não podem ou não são amadas e cuidadas.

 

“Recordou de algumas conversas que tivera com o pai. Ele dizia que as mulheres pareciam estrelas. Eram bonitas, iluminavam a noite que existia no peito dos homens. Moravam em outras terras, tinham outros modos, outros sonhos.”

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. 77 p.

 

Em resumo, a escrevivência, como concebida por Conceição Evaristo, é uma abordagem literária que funde a experiência de vida, a escrita e a sobrevivência, proporcionando uma expressão rica e autêntica da realidade das mulheres negras no Brasil.

 

Esse tipo de escrita também pode ser percebida em outras autoras femininas, como Jarid Arraes. A escritora, através de gêneros como romance e cordel, traz uma perspectiva conscientizadora sobre a vida do negro e também escreve com a intenção de exaltar a negritude.

 

Conceição Evaristo tem uma abordagem distintiva que destaca a importância da voz e da experiência da mulher negra na literatura brasileira. Seu trabalho contribui significativamente para a diversidade e a representação na literatura contemporânea do Brasil.

 

[Texto de autoria de Juliana C. L. Cavalli, aluna do curso de bacharelado em Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG]

 

Referências:

COLETIVO NARRATIVAS NEGRAS. Narrativas Negras. [s.l.] Editora Voo, 2021.

CONCEIÇÃO EVARISTO. Ponciá Vicêncio. Rio De Janeiro: Pallas, 2017.

CONCEIÇÃO EVARISTO | Escrevivência. Disponível em: <https://youtu.be/QXopKuvxevY?si=WoLP0Q9-UoWoSYPz>. Acesso em: 10 nov. 2023.

Roda Viva | Conceição Evaristo | 06/09/2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/live/Wnu2mUpHwAw?si=BFF5juzii6dFrwCE>. Acesso em: 10 nov. 2023.