Negra Enunciação – Espaço do Conhecimento UFMG
 
visite | BLOG | Negra Enunciação

Negra Enunciação

20 de novembro de 2023

 

Ouça também no Spotify!

 

“arte negra é precisamente a prática da libertação negra – reflexão e ação, ação e reflexão – em todos os níveis e instantes da existência humana” (Nascimento, 1976, p. 180).

 

A voz que enuncia esse texto é a de um homem negro. Assinalo aqui no início essa voz, para você que começou essa leitura, a recrie em sua cabeça com essa informação. Ao decorrer do texto você entenderá o porquê da importância de pontuar quem é esse enunciador. 

 

No contexto da sociedade brasileira, mesmo que 56% da população do país seja de pessoas negras, ou seja, que se autodeclaram pretas ou pardas, de acordo com a última pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), através do PNAD (Pesquisa Nacional de Domicílio), é evidente a falta dessas representações e vozes em espaços de poder tomando frente de decisões importantes para com a população negra. E nos contextos das instituições de arte e cultura não é diferente. Esse texto, tem como intenção trazer um breve panorama sobre a produção de arte negra ou afro-brasileira no âmbito das artes visuais, com foco na contemporaneidade e autoria negra

 

Rosana Paulino, ¿História natural?, 2016. Livro de artista, técnica mista sobre imagens transferidas em papel e tecido, linoleogravura, ponta seca e costura, 31,5 x 42,5 x 33,5cm. (Créditos: Rosana Paulino).

 

Primeiramente, será importante pontuar os termos contemporaneidade e autoria negra, no contexto desta escrita. Contemporaneidade é o momento atual, o presente, da qual escrevo esse texto, como também de um passado próximo, que será importante para apresentar algumas reflexões acerca da autoria negra nas artes visuais. Autoria, pode ser entendida como produção, geração, criação e a autoria negra, seria a criação feita a partir desse recorte étnico racial de quem produz algo, nesse caso, uma obra de arte. Janaina Barros Silva Viana (SP-1979) em um trecho de seu doutorado, traz uma fala de Abdias do Nascimento sobre como para ele é importante a evidência do autor: “Abdias do Nascimento coloca em questão a importância de destacar a cor da pele de uma autoria artística, pois evidencia relações de assimetria e desigualdades sociais tecidas por uma história de colonialidade de poder.” (VIANA, 2018, p. 48). 

 

Essas assimetrias e desigualdades sociais causadas pela colonialidade e todos os seus mecanismos de violência física, simbólica e epistemológica aflige ainda hoje as populações negras (e também as indígenas) pelo racismo e suas diversas facetas, que muitas vezes acontecem de formas sutis. Essa ferida ainda aberta (KILOMBA, 2010) tem sido exposta por alguns/algumas artistas negros e negras em diversas linguagens artísticas, como também por pessoas envolvidas no trabalho de curadoria, pesquisa, educação e afins. Por uma demanda vinda das próprias pessoas negras envolvidas nessas diversas áreas, os espaços institucionais se veem provocados a questionar e propor estratégias para preencher essas ausências. 

 

Se observarmos de 2016 até o ano de hoje, em 2023, veremos um crescente número de exposições com temas que foi convencionado chamar de arte negra ou afro-brasileira. Isso também acontece pela difusão de discursões sobre negritude e luta antirracista promovida pelas mídias sociais e de comunicação, mas que não é nenhuma novidade, pois é uma pauta que os movimentos sociais articulados já vêm discutindo há algumas décadas, por exemplo, pelo MNU (Movimento Negro Unificado) e os diversos intelectuais que o compunham. No âmbito das artes podemos citar aqui o intelectual, dramaturgo, ator, artista visual, Abdias do Nascimento (SP-1914/2011) mencionado no texto anteriormente.

 

 

Luana Vitra, BANDEIRA NACIONAL ATUALIZADA, 2019. Cimento e lama sobre tecido americano cru, dimensões variadas. (Créditos: Reprodução/Projeto Afro).

 

Mesmo com essa crescente de artistas visuais negros e negras adentrando com seus trabalhos nos espaços institucionais de cultura, a assimetria ainda se faz evidente. Como nos apresenta o artista, curador, educador, pesquisador e produtor Alan Ariê (SP, 1995) em seu projeto chamado Negrestudo, que realizou uma pesquisa em 24 galerias de arte localizadas em São Paulo. Ele fez uma pesquisa quantitativa e comparativa, a partir dos dados fornecidos pelas próprias galerias que analisou, de marcadores sociais como raça, gênero e localização, a procura de informações sobre as presenças e ausências de artistas nessas galerias. Resumidamente, o resultado do estudo apresentou uma grande defasagem de pessoas racializadas e trans, além das questões de local de nascimento.

 

A pesquisa de Ariê, através de seus dados, nos mostra um reflexo do mercado de arte no Brasil como um todo: São Paulo sendo um dos estados que abarca uma das maiores quantidades de galerias de arte no Brasil, demonstra que provavelmente o restante do país teria um número ainda mais baixo da não integração desses artistas dentro da ideia de representatividade. É importante pensarmos em como avançar na luta antirracista para além do discurso vazio, pensar que essas figuras, como os galeristas, tem um lugar social de grande impacto nesse circuito, e a  “neutralidade” em relação a essas pautas se torna um posicionamento.  

 

Ana Raylander Martins, CORAL DE CHOROS APRESENTA A OBRA CHORATÓRIO | HOMENAGEM A MARCELO AMORCELO, 2017 (MARCO), 2018 (APRESENTAÇÃO). (Créditos: Reprodução/Projeto Afro).

 

Concomitante ao pensamento crítico sobre a gestão desses espaços, é importante ressaltar que quando eu e outros autores falamos de autoria negra, estamos falando sobre a pessoa que produz e sobre sua inserção ou não no mercado da arte, exatamente por ser quem se é. Não estamos falando sobre a temática de suas obras, pois, a produção artística negra é múltipla, e não é preciso que os/as artistas trabalhem apenas com o “tema sobre negritude” se essa não for a questão que move suas pesquisas e produções. Falar sobre quem é esse autor/enunciador não é enquadrá-lo em um tipo.

 

Como citado no início do texto, evidenciar o enunciador se torna necessário pois ele é quem fala, é por ele que se projeta o discurso narrativo, e são pelas narrativas que se constituem os sentidos das coisas, as leituras dos signos e seus imaginários. Por muito tempo na história do Brasil, as narrativas hegemônicas se sobressaíram sobre diversas narrativas, assim a produção negra em arte, em suas diversas áreas e linguagens, apresenta-se como contra narrativas, que podem ter um caráter de denúncia das violências e luta por direitos básicos e pragmáticos, mas também pelo direito ao simples ato de estar vivo e apenas “ser-sendo”, sem a necessidade de guerrear pela sobrevivência.    

 

Tadáskia, ALADAS. Lápis de cor, spray prata e giz de cera sobre papel, 96 x 66 cm cada. (Créditos: Reprodução/Site Sé Galeria).

 

Portanto, esse texto buscou trazer uma breve reflexão a respeito da inserção da produção de autoria negra, enquanto também reparação sócio-histórica da população negra brasileira e, do seu avanço lento demonstrando com clareza o racismo estrutural (além de diversos ismos e interseccionalidades) que perpassa por esses indivíduos. Em contraste, também apontando para a potencialidade dessas e desses artistas, se tornando impossível ignorar essas presenças e vozes como parte fundamental hoje e sempre do que é a cultura brasileira, indiscutivelmente negra-indígena.

 

[Texto de autoria de Yan Nicolas, bolsista do Núcleo Audiovisual do Espaço do Conhecimento UFMG]

 

Referências

KILOMBA, Grada. “The Mask”. In: Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Verlag, 2. Edição, 2010.

MENEZES NETO, Hélio Santos. Entre o visível e o oculto: a construção do conceito de arte afro-brasileira. 2018. 234 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Acesso em: 2023-11-13.

NASCIMENTO, Abdias. “Arte afro-brasileira: um espírito libertador”. In: O genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Editora paz e Terra, 1978. Primeira versão publicada em Black Art: an International Quarterly, New York, Outono, 1976.

VIANA, Janaina Barros Silva. A invisível luz que projeta a sombra do agora: gênero, artefato e epistemologias na arte contemporânea brasileira de autoria negra. 2018. Tese (Doutorado em Estética e História da Arte) – Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. doi:10.11606/T.93.2018.tde-05122018-095812. Acesso em: 2023-11-13.