O que torna o trânsito tão caótico? E quais são as possibilidades para um transporte mais eficaz?
20 de fevereiro de 2024
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Horário de pico, congestionamento, sinais vermelhos, atrasos, buzinas irritantes e uma fila interminável de carros… Será que o trânsito é só isso? Em que momento ele se tornou um empreendimento tão grande e, tantas vezes, sinônimo de frustração aos moradores das populosas cidades metropolitanas?
Pela história das estradas
O trânsito é e sempre foi parte fundamental da história humana. Compreendido como um dos fenômenos sociais que revolucionou períodos históricos, o ato de transitar foi um passo fundamental para o processo de fixação da nossa espécie no planeta Terra. Do berço dos Sapiens, o continente africano, a humanidade se deslocou e ocupou até os mais recônditos cantos da Terra, de desertos e montanhas a florestas tropicais e planícies glaciais. O fato dos humanos terem se tornado uma espécie global depende, em grande parte, de caminhadas, migrações, mudanças, deslocamentos e das formas mais primárias do que hoje entendemos como trânsito!
A fixação dos sapiens pôs fim ao nomadismo e abriu espaço para uma forma diferente e mais estruturada de movimentação. Saltando alguns bons séculos, com o surgimento das civilizações antigas, a necessidade de se deslocar de um lugar ao outro, seja para fins de comunicação, colheita, escoamento de produtos ou passagem militar, pedia caminhos que fossem minimamente mais seguros, eficazes e que comportassem um número cada vez maior de habitantes e engenhocas que precediam os modernos veículos.
Os romanos foram os maiores empreiteiros: abriram mais de 85 mil km de estradas, sendo que vinte e nove grandes vias convergiam para a capital, provando que sim, “todos os caminhos levavam à Roma”!
Gravura de carroças em antiga estrada. (Créditos: Museu Metropolitano de Arte).
Então, em que momento da história o trânsito começou a revelar sua natureza, de certa forma, caótica, e gerar frustração ao cidadão que precisava se locomover de um ponto ao outro de seu território? Quem sabe, com o surgimento das grandes cidades modernas e urbanas? Pois os problemas de trânsito surgiram por lá mesmo, na Roma Antiga!
Os deslocamentos de tropas, o aperfeiçoamento da tecnologia da roda e a dimensão do império fez com que o imperador Júlio César se visse obrigado a criar algumas regras de circulação, já que as estradas locais não foram planejadas para suportar um grande volume de veículos e pessoas. Agora, pense nessa situação em uma escala dezenas de vezes maior! A cidade de Roma tinha, em seu ponto mais populoso, 1 milhão de moradores, comparada às cidades globais, como Tóquio, com seus 37 milhões de habitantes, Deli, com 24 milhões, ou até mesmo São Paulo, com 11 milhões, somado aos seus carros, motos, caminhões, bicicletas e, um pouco esquecidos em meio a esta grande malha de automóveis, os pedestres.
Acontece que, com a queda do império Romano do Ocidente em 476 d.C, as estradas da região foram se deteriorando e, a partir do século VIII, acabaram sendo completamente abandonadas por um período da história.
Séculos mais tarde, na Espanha da Europa Medieval, a peregrinação religiosa pelo percurso conhecido por Caminho para Santiago de Compostella fez com que a família real buscasse o aumento de segurança das estradas, agora declaradas bens de uso comum a todos os homens, não sendo possível adquiri-las como item privado.
Já no Brasil, os primeiros caminhos supriam algumas necessidades semelhantes! Os Caminhos de Peabiru (do tupi-guarani “Peya Beyu”, aportuguesado como Peabiru, que significa “caminho gramado amassado”) são um conjunto de trilhas criadas há mais de 3 mil anos, que ligam o Oceano Atlântico ao Pacífico, passando pelo Paraná até o Peru. Teorias acreditam que Peabiru foi criado por indígenas Guarani para conexão e comunicação entre aldeias, troca de mercadorias e expansão de territórios, sendo também utilizado por povos andinos. A rota também era usada para adoração de divindades, seguindo o trajeto do sol e a orientação da Via Láctea, morada dos deuses!
O caminho corta de um lado ao outro o continente sul-americano. (Créditos: Reprodução/Peabiru).
Com a invasão dos portugueses, a trilha passou a servir à lógica perversa da colonização, principalmente para passagem de missões religiosas e extração de ouro e prata na região. Como reflexos de quem as constroem ou as utilizam, às estradas surgem a propósitos desde os mais vis, como o transporte de pessoas em condição de escravidão, aos impulsos mais genuínos, como a necessidade de encontro e conexão.
Em cidades superlotadas e, principalmente em um país de proporções continentais como o Brasil, entendemos que são necessários elos entre diferentes partes do território, para transporte de mercadorias e circulação de pessoas. Sem ele, a vida como conhecemos hoje seria um delírio distante, eternamente isolados da vida que acontece em pontos mais distantes que uma caminhada… O trânsito é, então, mocinho ou vilão?
O que tem de errado com o nosso trânsito?
Os problemas ligados necessariamente ao trânsito moderno surgiram a partir da Revolução Industrial, com a fabricação do automóvel e o refinamento dos motores. Um dos primeiros carros que chegou ao Brasil desembarcou no Rio de Janeiro em 1897, importado da França. Uma curiosidade: seu dono, Jose do Patrocínio, emprestou seu veículo ao poeta Olavo Bilac, que causou o primeiro acidente de trânsito do país, na Barra da Tijuca, ao colidir com uma árvore a 4km/h, por não saber pilotar!
Um triciclo Serpollet semelhante ao de José do Patrocínio. (Créditos: Reprodução/O Globo).
As primeiras rodovias asfaltadas surgiram apenas em 1928, com o então presidente Washington Luís e seu slogan “Governar é abrir estradas”. Até 1940, essa era nossa única via pavimentada! Em 1956, com o lema “cinquenta anos em cinco” e o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, a malha rodoviária do país se desenvolveu a passos rápidos. A chegada das fábricas de automóveis ao Brasil fez com que a prioridade do chefe executivo fosse a expansão das estradas e a atração de multinacionais no campo dos transportes.
Trânsito na cidade de São Paulo, em 1962. (Créditos: Reprodução/Diário do Transporte).
Nosso principal modal é, definitivamente, o rodoviário. O Brasil possui aproximadamente 1.720.700 km de rodovias por toda sua extensão, sendo responsáveis por aproximadamente 61% da movimentação de mercadorias e 95% de passageiros (CNT, 2019). A toda e qualquer hora, tem sempre alguém indo a algum lugar, em um ritmo muito mais apressado e alargado do que lá na Roma Antiga, ou pelos Caminhos de Peabiru.
Tentamos constantemente controlar este fluxo ininterrupto, que nem no ápice da madrugada cessa completamente, e organizar o vai e vem dos motoristas e pedestres. Ainda assim, calcula-se que os moradores de grandes cidades chegam a passar, em média, praticamente um mês inteiro todos os anos dentro de um automóvel! Somente no hipercentro de BH, segundo a BHTrans, o fluxo de veículos em 2022 foi de 299 mil nos dias úteis.
Seria a solução mais fácil, então, criar mais estradas para diluir a passagem dos carros? Bom, não é bem assim! Abrir caminhos por rodovias pode gerar, em grande parte das vezes, diversos prejuízos sociais e ambientais, como a danificação de patrimônio cultural, histórico e arqueológico local, poluição sonora, expulsão de comunidades e alteração da superfície geomorfológica, além de um imenso saldo florestal e das espécies nativas que habitavam a terra que hoje suportam as rodas dos carros.
Para aliviar, de fato, os sintomas do trânsito, é preciso pensar alternativas para a mobilidade urbana inchada e acelerada das sociedades contemporâneas! Com o espaço limitado das ruas e cidades e a crescente demanda por automóveis, a chave para essa questão se encontra, principalmente, em um transporte de massa eficaz.
Para isso, medidas como as faixas exclusivas para ônibus, maior circulação, melhores condições e menores preços desses transportes coletivos, o apoio aos sistemas de caronas e às alternativas verdes, como a bicicleta, e, por fim, o investimento no transporte ferroviário (trens e metrôs), especialmente em um país de proporções continentais como o Brasil, ajudaria a aliviar o trânsito das nossas cidades, tornando-o mais rápido e menos violento. Para além disso, a proporção de gases nocivos emitidos na atmosfera, que contribuem para a intensificação do efeito estufa, seria bem menor, contribuindo para cidades mais sustentáveis, se considerarmos que os carros lançam na atmosfera, por passageiro, 7 vezes mais poluentes que os ônibus!
Para além das buzinas e congestionamentos
Em uma cidade de 2,7 milhões de habitantes, inscrita dentro de uma região metropolitana com outros 33 municípios e que carrega, no total, mais de 5 milhões de pessoas, o trânsito vai muito além de suas funções típicas de circulação, parada, estacionamento e operações de carga/descarga.
Trânsito e mobilidade urbana na RMBH. (Créditos Alessandro Carvalho/Diário do Comércio).
Ele é também conexão, contato, encontro, partidas, conflitos, descobertas e reencontros em uma trama de relações que se estende por todo o nosso entorno. É um espaço de convivência, um bem social do qual nos tornamos parte a partir do momento que deixamos nossas casas. Nele, se inscrevem relações de trabalho, elos familiares e de relacionamentos, vínculos de estudo e milhares de outras variáveis que nos envolvem em uma rede de relações e nos fazem percorrer longas distâncias em direção aos mais diferentes destinos.
Inspirada nesta complexa relação que se instala nos laços que unem a região metropolitana da capital mineira e que, seja ou não por intermédio do trânsito, conecta a todos nós, o Espaço do Conhecimento UFMG inaugurou, em dezembro de 2023, a exposição “MetropoliTRAMAS”! Se entrelaçando com o ir e vir das pessoas, estes laços desenham uma metrópole em tramas, experienciada de maneira sensível e multifacetada nesta produção do museu.
A mostra está aberta a visitação ao longo de todo o horário de funcionamento do museu. Nos vemos pelas MetropoliTRAMAS!
[Texto de autoria de Maria Eduarda Abreu, estudante de Jornalismo e estagiária do Núcleo de Comunicação e Design]
Referências
Censo região metropolitana de BH