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Nš 1496 - Ano 31
18.08.2005



O elogio da conspiração

Paulo Barbosa*

o período que sucedeu a his- tórica sessão de votação do
impeachment do ex-presidente Fernando Collor (vaya com diós!), eu cumpria o sagrado exercício de jogar conversa fora num balcão de bar, quando me apareceu um estranho personagem, funcionário de alto coturno em Brasília, de quem recordo agora, a propósito da crise política por que o país atravessa. Entre uma tequila e outra, eu comentava a situação nacional, e o assunto do momento eram as razões que haviam levado à renúncia do malfadado ex-presidente. De súbito, um cara magro, olhos fundos, cigarro pingado na boca, barba por fazer e meio bêbado surgiu não se sabe de onde, entrou na conversa sem pedir licença e, exalando fumaça por todos os poros ao mesmo tempo em que gesticulava com eloqüência, perguntou se acaso eu sabia a razão pela qual ocorrera o movimento do fora Collor, a votação no Congresso pelo impedimento do ex-presidente e a sua conseqüente renúncia para fugir à pena de ver cassado o seu diploma presidencial. Respondi, crédulo,ter sido aquilo o resultado das denúncias do enciumado irmão do ex-supremo mandatário, que, postas a circular pela imprensa, levaram à indignação da sociedade para com os métodos heterodoxos de Fernando Collor no trato da coisa pública.

Antes mesmo que eu enveredasse por um elogio à boa saúde da democracia brasileira, louvando a pronta reação da sociedade civil e a atuação dos nobres congressistas, o sujeito interrompeu-me e, peremptório, declarou em alto e bom som: "_ Não foi nada disso! O Collor caiu porque veio uma ordem lá de cima!" Um arrepio imediatamente percorreu-me a espinha. Jamais ouvira algo semelhante. Aquele juízo era a mais fantástica, estrambólica e inusitada das explicações para todos os males do Brasil em 500 anos de história! Como foi que eu não pensei nisso antes? Então, não houvera o PC Farias, as farras nos subterrâneos do Planalto (com direito a supositórios de cocaína, diziam as más línguas) e outros episódios de grotesca memória. Uma ordem lá do alto fora, sem sombra de dúvida, não só a causa, mas também a solução para o afastamento do ex-presidente e seus sequazes.

Sem argumentos para contraditar o sujeito, fui convencido por sua teoria conspiratória e comecei a pensar, como ele, que aquela era de fato a melhor explicação não apenas para o Colloraço, mas também para todas as nossas intempéries políticas, desarranjos econômicos e patologias sociais, em qualquer tempo. Extensivamente, o veredicto do camarada ajudava a entender todos os momentos difíceis por que o Brasil passou, passa e passará desde Cabral, quiçá desde os índios Tapuias. Quem suicidou Getúlio Vargas? Ora, veio uma ordem lá de cima! Quem organizou os militares para o golpe de 64 e os manteve no comando por vinte e tantos anos? Veio uma ordem lá de cima, com certeza. Quem mandou os anõezinhos ladravazes da Máfia do Orçamento fazerem festa com o erário e depois pediu-lhes a cabeça? Quem garantiu a reeleição de FHC e o conservou por oito longos anos à frente da privatização, digo, da nação? Quem fez o Ronaldinho Nike amarelar na Copa de 98, o Jânio Quadros renunciar, quem mandou envenenar o Tancredo e o pendurou em fios de nylon para declarar à imprensa que tudo estava bem no melhor dos mundos? Quem mantém o Paul Mc Cartney original e o Elvis Presley seqüestrados num atol perdido na Ilha de Marajó? Seguramente, para isso tudo, vieram ordens expressas lá de cima.

A partir daquele momento passei a desconfiar da existência de um poder sobrenatural nos céus de Brasília, uma espécie de Deus ex-machina que controla as finanças do país, conduz seus destinos políticos, decide sobre a vida e a morte nesta castigada terra, administra os dissabores e as alegrias do povo brasileiro, arbitra sobre todas as quizílias, de A a Z, e cuida de nossas fronteiras, do Oiapoque ao Chuí. Não, não se trata de paranóia. Assim como muitas correntes científicas sérias afirmam ter sido impossível ao homem pisar na Lua com tecnologia tão primitiva quanto a dos computadores da era do bit lascado (as imagens de astronautas dando pulinhos na superfície lunar seriam apenas locações realizadas no deserto de Mojave), também as chances de sucesso ou fracasso desta nação dependem unicamente de uma vontade maior que vem do alto, bem longe no firmamento. Nesse sentido, a sobrevida de um homem público no Brasil estará sempre condicionada a ele cair ou não nas graças dessa entidade amorfa, acima do bem e do mal, sem rosto ou nome, situada em algum lugar nas alturas, a léguas de distância do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário.

Com efeito, foi esse poder que deitou por terra o governo de Jango Goulart; foi Ele também o responsável pela obesidade mórbida do inconspícuo Bob Jefferson e o fator determinante, como se sabe, na recente decisão de Bob em espinafrar os caras magrinhos do PT. Foi esse poder, ainda, que descobriu para a humanidade, dias atrás, um tal de Marcos Valério, homem de careca lustrosa e coração de ouro, apontado como operador do chamado mensalão. Nos tempos atuais, portanto, em que o país se vê assolado por escândalos novos a cada dia, e as aduanas da nação parecem ter sido invadidas por malas e cuecas cheias de dinheiro, tremo só de pensar no que Ele (sei lá que nome tenha, uns o chamam de elite, outros, de forças ocultas) poderá estar articulando contra o presidente Lula, no exato instante em você lê estas linhas, caro leitor. Boa coisa não é. Por isso não se assuste, meu brother, se nos dias vindouros descobrirmos (pé de pato, mangalô três vezes!) algo capaz de tisnar a imaculada biografia do nosso hirsuto Presidente. Se isso ocorrer, não tenha dúvida, companheiro: _ Veio uma ordem lá de cima!

*Cartunista
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