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Nº 1591 - Ano 34
19.11.2007

Genética, confidencialidade e ética*

Volnei Garrafa**

O domínio de técnicas relacionadas com o melhor conhecimento do DNA possibilitou o diagnóstico pré-natal de problemas genéticos e a identificação dos portadores de genes sadios que podem dar origem a crianças com doença genética. Se, por um lado, esses testes antecipados permitem o aconselhamento a casais que correm o risco de gerar um filho deficiente, por outro, criam uma série de questionamentos éticos, desde a indicação de um “aborto terapêutico” até a limitação de um cidadão na sua atividade laboral.

Algumas doenças relacionadas com mutações genéticas, como a betatalassemia (uma forma de anemia hereditária) ou a anemia falciforme, são exemplos positivos de como testes confiáveis, simples e baratos podem trazer bons resultados. O que não se pode é generalizar, seja no que se refere a testes de aplicação individual ou coletiva, seja no período pré-natal ou na idade adulta. O perigo está na transformação do risco genético na própria doença. As chamadas “doenças genéticas”, em sua maioria, são conhecidas por terem parte de suas causas ligadas ao ambiente, desde cânceres e diabetes até afecções cardíacas e anemias.

De modo geral, o termo vem representando, nos meios médicos, uma escolha que superestima o fator genético e subestima as implicações externas. Mas são raras as doenças em que o gene, isoladamente, desenvolve a patologia de modo implacável (como a Doença de Huntington, que ataca o sistema nervoso). Trata-se, portanto, de uma decisão com relação a “valores”, além de uma análise adequada do que é ou não “normalidade”. Um exemplo paradigmático é o uso de testes genéticos no cotidiano. Questões como aborto passam a ser colocadas não somente nos casos de malformações, mas também de anomalias cromossômicas.

Para os adultos, surge a questão da notificação do defeito genético. Ela deve ser feita somente ao indivíduo portador de genes “ruins” ou também à sua família? Nos EUA, as conseqüências já ganharam complexidade social: não só empregadores e seguradoras, mas também escolas e Cortes de Justiça buscam respostas eficazes, com custos mais baixos e riscos menores. Usam, cada vez mais, a técnica dos testes.

É necessário que não se despreze a contribuição dos que vivem a dinâmica da ciência e da técnica, mas sem delegar a eles decisões que dizem respeito a todos. O controle sobre qualquer atividade de interesse público e coletivo a ser desenvolvido deve ser social (...) O controle social deverá prevenir o difícil problema de um progresso científico e tecnológico que reduz cidadão a súdito, em vez de emancipá-lo.

Assim, os testes preditivos vão além dos procedimentos médicos e criam verdadeiras categorias sociais, empurrando o indivíduo para quadros estatísticos. Os problemas sociais são reduzidos às dimensões biológicas. As doenças mentais, a homossexualidade, o gênio violento ou o próprio sucesso no trabalho são – de forma reducionista – atribuídos à genética. As dificuldades escolares – antes explicadas pelas desigualdades culturais ou nutricionais – são imputadas a desordens psíquicas de origem genética.
Seguradoras ameaçam não cobrir as despesas médicas de uma criança cuja mãe tenha sido alertada de que um dia o filho seria vítima de problema genético.

Entre números, estatísticas e exames, os empregadores valem-se de testes para previsões orçamentárias de longo prazo. O indivíduo-cidadão é desconsiderado em detrimento dos pacientes coletivos da nova medicina. Mesmo na ausência de sintomas, o risco é endeusado como a própria doença. Já existem registros de recusas para a concessão de empregos, para a obtenção de carteira de motorista ou para a inscrição no seguro-saúde.

Apesar de toda a argumentação relacionada a abusos dos testes preditivos, não é minha intenção assumir posição fechada sobre o assunto – favorável ou contrária –, mas alertar para os perigos da radicalização irracional da técnica. A força da ciência está em apresentar-se como uma lógica utópica de libertação. Tudo isso deveria desaconselhar tentativas de impor uma ética autoritária, alheia ao progresso. Deveria induzir-nos a evitar formulações de regras jurídicas estabelecidas sobre proibições. É preferível que os vínculos sejam expressos positivamente e que seja estimulada uma moral autógena.

Em outras palavras, é necessário que não se despreze a contribuição dos que vivem a dinâmica da ciência e da técnica, mas sem delegar a eles decisões que dizem respeito a todos. O controle sobre qualquer atividade de interesse público e coletivo a ser desenvolvido deve ser social. No caso da bioética e da genética, a pluriparticipação é indispensável para a garantia do processo.

O controle social deverá prevenir o difícil problema de um progresso científico e tecnológico que reduz cidadão a súdito, em vez de emancipá-lo. A ética é um dos melhores antídotos para qualquer forma de autoritarismo e tentativa de manipulação.

*Professor e coordenador da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília, editor-chefe da Revista Brasileira de Bioética e presidente da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da Unesco.
**Artigo publicado na Folha de S. Paulo

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